Lady Macbeth (Lady Macbeth)
“Pelo coçar do meu polegar, algo maléfico vem chegando”. A primeira cena de Lady Macbeth não causa nenhuma sensação digital como a descrita pela bruxa do outro Macbeth, o do velho Shakespeare. Mas algo maléfico realmente é despertado. Envolta por um véu, Katherine (Florence Pugh) se casa por arranjo com um homem mais velho, de uma família fria e cruel. Quando o véu cai, o espectador se depara com uma mulher cheia de desejos, plena de buscas, o retrato quase etimológico da paixão, afinal, tal palavra se origina do termo pathos, que também dá origem à palavra patologia. Ao se envolver com Sebastian (Cosmo Jarvis em atuação mega consistente), um jovem empregado da propriedade do marido, ela embarcará em uma rede de desejo, crime, erotismo e quebra de qualquer limite.
Baseado no romance Lady Macbeth de Mtsenk, do russo Nicolai Leskov (claramente ecoando a Lady famosa do tio Will), o longa de estreia de William Oldroyd é uma das produções mais impactantes da temporada. Começando pelo roteiro da também estreante em longas Alice Birch, é um daqueles trabalhos que ficam marcados nos sentidos do espectador por um bom tempo. Enxuto, preciso, com um rico subtexto que se revela em imagens cheias de significado, o texto é realmente uma preciosidade.
A elegância do roteiro encontra eco no olhar e nas mãos de uma direção inspiradíssima. Mr. Oldroyd é um nome para se prestar atenção. Que trabalho, senhores! Uma metáfora bastante precisa sobre o trabalho de diretor de cinema é a que faz dele um maestro, regendo todos os instrumentos de uma orquestra. Se este filme é o cartão de apresentação de Oldroyd, temos aqui um maestro multi-intrumentista-que-faz-malabares-assovia-chupa-cana-canta-e-entende-de cinema. Todos os meandros do ofício são cobertos com rara competência, da direção de atores ao posicionamento das câmeras, do tom ao ritmo das cenas.
Geralmente, em análises de filmes “mais sérios”, os aspectos sonoros são negligenciados pela crítica. Lady Macbeth exige que quebremos essa convenção. Há tempos que não se via um uso tão inteligente e narrativo do som. O filme é todo construído no contraste entre silêncio e ruídos (farfalhar de saias, respirações, sons corporais). Não há trilha incidental e, embora algumas resenhas tenham falado em três, percebi apenas uma intervenção musical, além do hino cantado na igreja durante a cena do casamento. A atmosfera tensa criada pela ausência de música e pela exploração sonora causa, na tela e no espectador, uma explosão sinestésica.
Sinestésica é também a abordagem da fotografia genial de Ari Wegner. Todos os sentidos são explorados pela refinada escolha das lentes, pelos planos abertos e pelo ótimo uso dos planos médios. O efeito se expande nos cenários, figurinos e na direção de arte irrepreensíveis. Uma das limitações dos filmes de época é que, por não se situarem na contemporaneidade do espectador, passarem sempre a sensação de anacronismo, de espaços montados, artificiais. Aqui isso não ocorre. A sensação é a de espaços nos quais aquelas pessoas realmente vivem, objetos que usam, roupas que vestem. Não é imerecido que já esteja gerando Oscar buzz nessas categorias.
Mas o maior burburinho de uma indicação tem nome e sobrenome: Florence Pugh. Caro leitor do Metafictions, respiro fundo e emocionado para escrever o que escrevo agora: até as 18h04 do dia 17 de agosto de 2017, hora em que escrevo este texto, esta inglesa de 22 anos apresentou a melhor atuação feminina do ano. Nasce uma estrela. Quem ama o cinema sabe bem a sensação que causam atores que enchem uma tela daquele tamanho com suas presenças. Florence Pugh é dessa cepa de intérpretes. A construção de sua Katherine é de uma profundidade incomparável. Personagem difícil, a atriz a domina com tamanha competência, que ficamos culpados por sentir empatia em momentos em que todos os preceitos morais da sociedade gritam “NÃOOO!” São camadas e camadas de significação que se revelam em uma impetuosidade que é da personagem, mas que jorra da atriz. E que voz! Vá ao cinema e ouça o que estou falando. Selo Meryl Streep de interpretação! (E cadê a direção de arte do Metafictions que ainda não fez este selo para o uso exclusivo deste crítico?)
Já dizia Vinicius de Moraes que “são muitos os perigos desta vida para quem tem paixão”. Lady Macbeth é cinema em estado de paixão. Lindamente assustador, perturbador e fascinante.
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