RPR: Oldboy e Dias de Vingança
Imagina que o Papa Francisco decide construir, fora do Vaticano, uma gigantesca igreja. Imagina que ele convoca um artista para pintar o interior do templo. Imagina agora que esse artista decide refazer, no teto, as pinturas da Capela Sistina. Aí, nesse momento, você compreende sobre o artista: “esse maluco é um tarado qualquer, um idiota, porque você simplesmente não pode querer refazer uma obra-prima; não tem sentido”. É mais ou menos isso que aconteceu com Oldboy. E o tarado hipotético foi encarnado pelo Spike Lee.
No RPR de hoje, vou tentar analisar friamente as duas obras, como independentes, concluindo acerca de uma sem ter como comparativo a outra (apesar de, obviamente, pontuar lado a lado o conceito de cada). É difícil. Mas ontem me peguei lendo o texto de alguém aí da rede, no qual o “amigo” detonava o Oldboy de Chan-wook Park, porque tudo no filme mudava demais a concepção da história presente no Mangá, o qual o inspirara. Na mesma hora, fogo ferveu dentro de mim e eu, vermelho, não aguentava ler as palavras do cidadão. Não interessa a forma com a qual Park adaptou, o que interessa é única e exclusivamente o filme, como peça independente. E nisso – conforme dito e redito no Assista! desta segunda-feira – a obra cinematográfica sul-coreana é impecável. Após este meu pensamento, vi que sempre analisei o remake americano em comparação e isso – devo concordar – é deveras penoso, já que ele não tem sentido em existir (como explicitado na anedota que introduz o presente texto). De todo modo, ainda que eu consiga ser imparcial nesse caso – o que acho “semi-impossível” – Spike Lee pecou; meteu-se a refazer algo que é definitivo, que não tem que ser revisitado ou relido. Revolta!
Escutei por aí que em todo título do diretor americano, nos créditos iniciais, há a inscrição “A Spike Lee Joint”, com exceção deste que estamos a analisar. Seria isso uma forma de o cineasta não considerá-lo um projeto próprio, mas tão somente um trabalho a ser entregue aos estúdios? Isso diminui o seu erro? Não. “Seja grão de areia, seja pedra, ambos afundam na água”. E, como falei na análise previamente publicada, isso é uma coisa que os ocidentais jamais entenderão. E é exatamente isso que cria um abismo intransponível entre as duas obras.
Oh Dae-Su e Joe Doucett, um sul-coreano, o outro americano. Park Chan-Wook e Spike Lee, um sul-coreano, o outro americano. Oldboy e Oldboy: Dias de Vingança, uma obra-prima, o outro um filme fraco. Certamente essa conclusão não é porque eu sou um fã daquele, mas porque há um sem-número de pontos para serem considerados que coloca as produções em níveis opostos de qualidade. E, na minha opinião, Dias de Vingança não teria como dar certo uma vez que a história por trás de Oh Dae-Su é tipicamente oriental. O filme trata sobre vingança – como o próprio nome do remake indica e a “chamada” no poster do original, da mesma forma, qualifica – mas os sul-coreanos não tratam o tema de forma polarizada; eles não fazem disso uma lição ideológica de uma luta do lado bom contra o lado desprezível. Pelo contrário, eles nos colocam como demasiado humanos, seres que erram constantemente e que buscam, em novo erro, um acerto de contas. Em suma, quando um personagem oriental busca vingança, ele tem todo direito, assim como o que está sendo perseguido tem sua justificativa para ter agido da forma que resultou em sua caça pessoal. Não há o esboço do herói e do vilão. Há indivíduos e como tais, de natureza falha. O ocidental não consegue enxergar isso, em especial o americano, que precisa do maniqueísmo para viver e ver as coisas ao redor.
De primeira, o estranhamento é causado: Oh Dae-Su tem nossa simpatia, pois, assim como ele, não compreendemos o inferno pelo qual atravessa. Joe Doucett, em contrapartida, é um fanfarrão idiota, com atitudes detestáveis logo nas primeiras sequências que o apresenta. No confinamento imputado a eles deliberadamente, o sul-coreano vive só, tentando encontrar nas profundezas de sua alma o que pode tê-lo levado àquele castigo tão brutal. Ele escreve sua autobiografia, quando percebe que havia pecado demais. O americano não vive consigo mesmo; há ratinhos, visões, que fazem companhia a ele. Ele não revisita sua vida e se dá conta de que era um completo babaca. Ele lista alguns nomes óbvios que sugerem suas desavenças.
No desenrolar da narrativa, conhecemos o algoz do nosso protagonista – repare que não uso o verbete “vilão” – e novamente uma obra se distancia mais ainda da outra. O milionário construído por Park é alma sofrida em busca de vingança (sim, a vingança aqui não é só de Oh Dae-Su), enquanto a figura de Spike Lee é um afetado, anormal, uma imagem estilo aberração. Seu corpo traz deformidades, inclusive, como numa tentativa de distanciá-lo de um modelo absolutamente humano. Em ambos os casos, o verdugo cria uma situação para que o personagem principal cometa pecado semelhante (ou igual) àquele pelo que foram julgados por nosso protagonista, tempos atrás. No americano, a construção disso é falha e o personagem se arrepende amargamente. No sul-coreano, a construção disso é belíssima, o personagem se arrepende amargamente, mas opta, deliberadamente, por esquecê-lo, em uma conclusão que abala por completo a zona de conforto do espectador desavisado (tento, ao máximo, não lançar spoilers brutos, ainda que um ou outro seja jogado ao vento).
Além disso, Oldboy é muito mais que um filme de vingança tão somente. Ele aborda de forma profunda temas como solidão, amor, ódio, honra, autoconhecimento e autoflagelação. Dias de Vingança tenta encontrar um ou outro ponto desses – mas não todos – de forma, por vezes, pouco coerente e sem a construção fantástica de Park Chan-Wook. Não adianta nomes conhecidos, experientes e, isoladamente, com um belo trabalho (como é o caso dos atores Josh Brolin, Elizabeth Olsen, Sharlto Copley e Samuel L. Jackson), dirigidos por alguém conceituado como Spike Lee. Se não for genuíno, o resultado é frio, distante e sem sentido. Reza a lenda que Josh Brolin, ao falar com Park sobre o remake, teria ouvido do diretor sul-coreano “você e Spike façam seu próprio filme, não refaçam o nosso”; Spike disse mais tarde “e foi isso o que fizemos”. Não deveriam nem ter feito. Park Chan-Wook, com os incríveis Min-sik Choi, Ji-tae Yu e Hye-jeong Kang, da mesma história fazem uma obra profunda, bela, plena. Fazem uma obra-prima.
Normalmente, nos RPR, nós fazemos um quadro comparativo, em determinadas categorias, elencando qual das obras é superior. Neste, dispenso o recurso, já que, por todas as palavras aqui escritas, nota-se que Oldboy é – e sempre será – incomparável.
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