Assista!: Anomalisa


Um dos piores mitos dentro do Cinema é o que diz que animação é “coisa de criança”. Primeiro porque, dentro deste pensamento, pressupõe que algo ser pra criança é sinônimo de ser inferior. Coisa que é imbecil considerando grandiosas obras como “WALL·E“, “O Rei Leão” e “Divertida Mente“, todos inteligentes e com mensagens importantes em seu conteúdo. Segundo que parte do princípio que, usando a linguagem do desenho, é impossível alcançar o adulto que, pasmem, já foi mais jovem, ora pois. Em contrapartida à esse pensamento tacanho temos títulos pra lá de +18 como “BoJack Horseman“, excelente e ácido, “Uma Família da Pesada“, mais conhecida por aí e, apesar de ter muita idiotice, também de boa qualidade, entre outros. Em suma: animações tem muito poder. Poder até maior, por vezes, que uma obra live-action.

Dentre esses casos destaco Anomalisa (disponível para os clientes TeleCine Play aqui), uma animação que fala profundamente sobre as relações humanas. Escrita e dirigida por Charlie Kaufman, já citado em meu último Assista!, o longa conta de maneira orgânica a história de um cara que tem a vida entediante e que não se conecta emocionalmente com ninguém há muito tempo. O recurso usado para passar essa pacata e insurportável rotina é a repetitividade de suas tarefas e a aparência copiada de todos a seu redor.

Michael e a onda de pensamentos que o invade.

Michael (David Thewlis) é um palestrante que viaja pelo país a trabalho e se vê indiferente à todos, e, para expressar isso, Kaufman nos põe sob a pele do personagem, através de uma visão que enxerga a todos com a mesma cara e uma audição que identifica uma uníssona voz. Não há ninguém especial no mundo desse homem, ainda que ele tenha uma esposa e filho. Mas por quê? É essa a tônica de todo o filme. O pensamento de Michael não o permite sentir a solidão de forma pacífica e o questiona torturosamente. Por que todos são sem graça? Será sua culpa? Será seu problema? Será isso normal?

Em meio ao caos, surge a paixão. Representada aqui por Lisa (Jennifer Jason Leigh), uma voz diferente entre as demais, um rosto único, a luz do fim do túnel; a pessoa por quem, segundo ele, esperara por toda a vida. O amor romântico materializado, em suma. E, entre tantas deliciosas coisas que uma paixão pode estimular, a mais notável é o efeito paliativo e flutuante que supera circunstâncias das mais adversas. Michael se vê apaixonado e reacende enquanto ser diante das faíscas do sentimento.

“- I think you are extraordinary. – Why? – I don’t know. It’s just obvious to me that you are.”

“Loucos são apenas os significados não compartilhados. A loucura não é loucura quando compartilhada.”, já disse Zygmunt Bauman, brilhante sociólogo que, dentre outros assuntos, analisava o amor moderno. Creio que a frase esclarece com pontualidade como a paixão funciona. Caso seja algo recíproco não é loucura, é paixão. Em um universo de pombinhos, até mesmo a versão de “Girls Just Wanna Have Fun” cantada em italiano à capela torna-se linda. Ou as maiores e mais ridículas banalidades que o outro é capaz de expressar diante de olhos hipnotizados.

Lisa se sente também sozinha no mundo em função de ser diferente do senso comum onde se insere. Baixinha, gordinha, com uma marca no rosto e humor bobo, a garota se exclui e é insegura. Por sua vez, tenta fazer com que suas esquisitices a façam sentir confortável e singular. Uma vez ouvi algo simples mas que tenho como o melhor elogio que já recebi: fui chamada de esquisita. E essa palavra era ressignificada na medida em que se encaixava como uma justificativa de alguém que explicava por quê gosta de mim. Assim como eu, Lisa curte sua estranheza. E Michael, naquele momento, abarca sua fragilidade e carinhosamente repousa suas anomalias sobre seu colo.

“Anomalisa”, ele diz.

“I feel like an anomaly. But I kind of like it, sometimes. It makes me special, you know what I mean?”

Ciente da rapidez da paixão e muito são ao observar uma sociedade com tendências cada vez mais obsoletas, Bauman define que existe o “amor líquido”, já que “vivemos tempos líquidos em que nada é para durar”, parafraseando-o. Basicamente, ele expica que muitas vezes o que chamamos de amor nada mais é que um sentimento efêmero, volúvel e veloz. O que, em minha opinião, é o que caracteriza a paixão, coisa que cada vez mais é priorizada e, como consequência, acelera os laços afetivos de toda a sociedade.

Michael mergulha facilmente no desejo e desfruta da felicidade como alguém em abstinência. No entanto, uma vez que o Nirvana passa – e ele eventualmente abaixa -, o homem se depara com a mundanidade. Lisa não atende tão somente suas necessidades imediatistas, tal qual uma utopia ambulante, uma idealização.

Michael foge de si e de vínculos que começam a criar raíz.

Anomalisa é inusitado por ser extremamente humano. Dentro da dinâmica de questionamentos existenciais, vejo-me alternando entre ambos os personagens, e sinto-me pouco competente para julgá-los por ter experimentado ambos os lados. Sei o que é fugir ao me deparar com a condição de mostrar-se frágil. Sei o que é ser deixada quando entregue. Entendo perfeitamente a visão de Michael ao ter dificuldade de estabelecer conexão com as pessoas pois eu mesma a tenho. Acredito, no entanto, que muito valha a paciência de reinventar a paixão conforme o tempo ou outras coisas mais apareçam como empecilho.

Por fim, acho que caio no clichê de acreditar no amor em sua forma não-líquida, afim de tornar anomalias em não só meros diferenciais como razões para seu  próprio sustento.

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