Garimpo Netflix: White Rabbit, Invasão Zumbi & Fronteira
Você já sentiu a agonia de não pertencer a um lugar específico? Como se estivesse boiando em um oceano violento que tenta te tragar ferozmente, a cada investida das ondas? Como se tudo à sua volta houvesse se tornado nocivo o bastante para você permanecer em silêncio, guardado em sua bolha auto-construída, um bunker psicológico? Fitando semelhantes como lobos prontos a desferir um ataque?
Tendo essa sensação como ponto de ligação entre os títulos aqui citados, o Garimpo Netflix de hoje se vale da deterioração das relações pessoais e em como isso afeta o todo. A sociedade não é senão um conjunto de indivíduos e se um não funciona nos padrões da maioria, reflexos serão sentidos no grupo e este pode começar a ruir. De alguma forma, seria esse o colapso da civilização?
– White Rabbit, de 2013, dirigido por Tim McCann
“A sociedade falhou em me tolerar e eu falhei em tolerar a sociedade” (Mille Petrozza)
Não é de hoje que histórias envolvendo outcasts (pessoas excluídas das relações pessoais triviais) sempre causam em mim certo fascínio. Muito provavelmente por ter passado alguns anos da minha vida em uma zona de exclusão (não falo isso com pesar, porém; não agora). A escola – nosso templo de frustrações – é o principal detonador e condutor desse sentimento de profunda agonia. Não só meu, mas da maioria, acredito. É lá onde estamos em contato com a norma a ser reproduzida ao longo do tempo de vida: siga as regras, socialize, dê bons frutos, receba seus prêmios, seja um número (de matrícula, de nota, de colocação), não pense, não subverta, não deslize. “O que você é na escola determina o que você será na vida”. O cacete! A angústia pelo medo do erro é só um construto covarde de uma sociedade torpe desfilando em um baile grotesco de máscaras, ao som de uma sinfonia de horror. E esse show de bizarrices é o principal responsável pela explosão interna de um.
White Rabbit conta a simples história de um adolescente, Harlon (belissimamente atuado por Nick Krause), que sofre diversas formas de abuso: em casa, com um pai violento e alcoólatra; e na escola, com aqueles “dóceis” americanos “caridosos” e o velho bullying. Seus dois principais espaços de convívio, formadores das suas principais relações pessoais, são absolutos infernos em vida. Quando seus ínfimos contatos humanos desaparecem (seja por ter apenas um amigo; seja pela frustração amorosa), Harlon vislumbra uma saída apenas: fechar-se em seus gibis, como fuga para o que ocorre no plano real. Apesar disso, é constantemente atormentado pela imagem do coelho branco que, ainda durante a infância, fora obrigado a caçar com um tiro, por pressão extrema de seu pai. Nem a mente do garoto traz paz de espírito.
O tema – nota-se – é rico aos norte-americanos. Não raro, somos atingidos por notícias acerca de um novo massacre em alguma escola do país. Mais um filme sobre este assunto não denota falta de criatividade, mas, sim, a necessidade de se exorcizar este marcado e macabro traço sempre presente na cultura de lá. Acredito que a exclusão seja universal, mas as facilidades de armamento do local ajudam a proporcionar episódios como este. De todo modo, Tim McCann não refaz um Elefante (de Gus Van Sant; talvez a mais expressiva obra sobre isso). O diretor se atém muito mais na transformação que um adolescente sofre a partir dessas experiências de total desgosto; especialmente neste momento da vida em que o indivíduo está efetivamente mudando a cada instante. Um Frankenstein pós-moderno, sendo o cientista-criador o próprio meio no qual ele vive.
Será que é possível passar por essas situações abusivas mantendo-se íntegro física, emocional e psicologicamente? Ou será que o coelho branco vai revidar, em algum momento?
– Invasão Zumbi (Busanhaeng), de 2016, dirigido por Sang-ho Yeon
Ao ler esse título, você deve estar falando consigo mesmo “esse maluco só pode estar de zoação com a minha cara. Primeiro, indica mais um filme de bullying. Agora, me vem com mais um filme de zumbi. Vai à ‘legítima merda’!” (como gosta de nos mandar um super-fã do site aí). Duplo erro na sua sentença. Nem aquele é só mais um filme sobre bullying, muito menos este é só mais um sobre zumbi. Sei, no entanto, que a temática parece estar esgotada. Já tentaram de tudo: desde o belíssimo “Extermínio” de Danny Boyle, no qual acompanhamos a jornada de sobrevivência no microcosmos (a partir da experiência de três personagens que se unem), passando pelo interessante “Guerra Mundial Z” de Marc Forster, quando o foco são os superpoderes do mundo tentando solucionar o problema geral da epidemia zumbi (a sobrevivência no macrocosmos), chegando até o curioso “Meu Namorado é um Zumbi” de Jonathan Levine, no estilo comédia romântica, envolvendo esse universo para narrar um conto açucarado de amor. É evidente – é muito evidente – que há um bilhão de outros títulos, mas eu fui nos primeiros que me vieram à cabeça e cujas estruturas são bem diferenciadas entre si. Sequer abordei os clássicos; sim, eu sei.
Se você realmente acha que nada mais poderia ser feito a partir da alegoria de um zumbi, então saiba que sempre dá e que, mais do que tudo, um sul-coreano é bem capaz de qualquer coisa. Nesses termos, Invasão Zumbi, dirigido por Sang-ho Yeon, se utiliza dessa “mitologia” para tratar das relações sociais. Enquanto um vírus zumbi parece se iniciar em Seul, em fuga desesperada centenas de pessoas pegam o trem para Busan (justificando o nome em inglês Train to Busan, em tradução “Trem para Busan”). O filme, então, a partir daí, fica dentro da locomotiva, passando por alguns vagões, enquanto a epidemia começa a se fazer presente também ali. Os não infectados farão o impossível para sobreviver, apenas no espaço limitado daquele grande veículo. Dentre os dramas de cada um está Seok-woo (Yoo Gong) tentando, acima de tudo, garantir a proteção de sua pequena filha Soon-an (Su-an Kim).
A alegoria da criatura errante, porém sem vida, é utilizada por Sang-ho Yeon para representar a ameaça constante que pode fazer uma civilização entrar em colapso. Nessa busca desesperada pela sobrevivência própria, as relações pessoais começam a se deteriorar, à medida em que a união vai se desfazendo para que um indivíduo consiga permanecer. Aqueles que encontram um espaço seguro se apropriam dele, impedindo que os demais tenham acesso. Assim, asseguram a integridade daquele refúgio. Duas Coréias segregadas por vagões, enquanto lutam contra a epidemia zumbi, balançando no fio da navalha pela manutenção da vida. Duas Coréias separadas por uma divisão arbitrária, enquanto especulam ataques nucleares, balançando no fio da navalha pela manutenção da “paz”.
– Fronteira (Frontera), de 2014, dirigido por Michael Berry
Não me lembro de ter visto, em anos recentes, tantos filmes sobre imigrantes e em como sofrem para se adaptar ao novo local de morada quanto atualmente. Parece-me que o momento extremista ao qual estamos acostumados está gerando, na Arte, um movimento no sentido oposto; como se ela tentasse nos fazer entender o outro, quase como um exercício de empatia. Quando falamos sobre o ser humano – e é ele o objeto das Artes – tudo é tão mais complexo do que uma definição preto no branco ou um “sim” ou “não”.
Fronteira nos conta a conhecida história de imigrantes mexicanos atravessando, de maneira ilegal, a inóspita fronteira que separa um país desenvolvido de outro menos; a busca pelo sonho americano por parte daqueles que tem poucas chances em sua terra natal. Na pele de Miguel (naquilo que Michael Peña sabe fazer de melhor, devido ao seu physique du rôle marcante para interpretar um chicano sofredor – e isso não é uma crítica, muito pelo contrário), acompanhamos sua trajetória ao lado de Jose (muito bem atuado por Michael Ray Escamilla), que não compartilha da mesma ética e bondade daquele. A travessia se torna ainda mais problemática quando os dois latino-americanos são alvo de três moleques americanos (daqueles “tudo pela América”, tal qual o presidente que este povo elegeu recentemente), enojados pelo constante fluxo migratório fora da lei. Numa fatalidade, indiretamente são responsáveis por vitimar Olivia (Amy Madigan), mulher de um ex-xerife local, Roy (nas mãos do sempre impecável Ed Harris), que guarda certo preconceito para com o povo vizinho. Acusado de ser o responsável pelo acontecido a Olivia, Miguel é preso, enquanto o pragmático Roy tenta desvendar o que, de fato, ocorreu naquela terra de ninguém.
O filme trata sobre como as relações pessoais se deterioram, seja a priori ou a posteriori. Seja pelo preconceito advindo de um discurso famigerado que sequer fora problematizado por quem o reproduz, seja pelas falhas cometidas por conterrâneos igualmente sofredores, mas que, quando a chance bate à porta, não pensam duas vezes em agir como aquele que os oprime. O sonho de todo presidiário não é ser livre; seu sonho é ser o carcereiro. Dessa forma, os personagens tentam lidar com as perdas constantes em seus caminhos, tentando se reconstruir a partir dos escombros que surgem dos conflitos pessoais. Em uma conclusão extremamente instigante e evocativa, Michael Berry demarca a existência de barreiras concretas, ainda que todos sejamos nada além de um simples humano. Demasiado humano.
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