Crítica: Blade Runner 2049

Unheimlich. Uncanny. Estranho. Um dos principais legados de Freud foi a cunhagem do termo que descreve algo familiar que causa horror e estranhamento, ou algo estranho ou atemorizante que parece reconhecível. De certa forma, Blade Runner 2049, tanto em termos narrativos quanto em seu próprio projeto cinematográfico, resume bem o termo freudiano.

Depois de anos de especulação, quando a sequência do clássico de Ridley Scott saiu do papel, a reação da maioria (minha inclusive) foi de profundo descontentamento. Para quê uma “parte 2” de um filme único que não necessita de uma continuação? No entanto, à medida que nomes de talento se associavam ao projeto (o diretor Denis Villeneuve, o diretor de fotografia Roger Deakins, Ryan Gosling e até mesmo Harrison Ford), um voto de confiança passou a ser dado ao projeto. O universo familiar de Blade Runner voltaria às telas, mas o temor de um fiasco e, pior ainda, uma obra que maculasse o filme de 1982, sempre esteve presente.

Porém, é nesse território do “estranho” que Blade Runner 2049 habita com sucesso. Vários elementos, em diferentes níveis, são reconhecíveis – o caos urbano futurista, a trilha sonora, os elementos da direção de arte, a tematização da pós-humanidade – mas com um aspecto hipnoticamente sinistro, opaco, onde explicações aparentemente óbvias conduzem a becos sem saída, criando uma sensação desnorteadora.

Ainda mais que o primeiro filme de 1982, essa é uma história de detetive. O policial K. (Ryan Gosling, que ilustra tão bem o limite entre fragilidade e a raiva contida) segue pistas e suspeitos em busca de respostas que podem mudar não só o mundo, mas a própria natureza da realidade – e mais não pode ser dito, pois o próprio enredo do filme já é um spoiler. De qualquer forma, a investigação de K. o faz cruzar o caminho do mega-empresário Niander Wallace (Jared Leto), responsável por uma nova “safra” de replicantes, sua letal assistente Luv (Sylvia Hoeks, excelente) e o antigo blade runner, Rick Deckard (Harrison Ford).

O roteiro de Hampton Fancher (que também escreveu o filme de Ridley Scott) e de Michael Green tematiza questões essenciais da obra de Philip K. Dick e, mesmo que essa seja uma história original, a influência do autor que inspirou a produção de 1982 se faz presente de diversas formas em Blade Runner 2049. Primeiramente, o filme apresenta uma multifacetada discussão sobre a maneira intersubjetiva que lidamos com uma suposta realidade, denotando o quanto o factual está fundado em elementos altamente ficcionais. Há uma belíssima cena em que é mostrado em detalhes o processo de construção de memórias, ilustrando esse ponto melhor que qualquer obra de Baudrillard. Em segundo lugar, o filme explora um dos temas-chave de Philip K. Dick, que é o embaçamento das fronteiras entre o humano e o não-humano. De maneira ainda mais radical que o original, Blade Runner 2049 ilustra os limites porosos entre o humano e o pós-humano, de forma sedutora mas também assustadora (novamente, o “estranho”). A cena em que K. tem um momento altamente romântico com sua “namorada”, Joi (Ana de Armas) parece saída de um romance perdido de Dick.

Além disso, não haverá obra cinematográfica mais visualmente inventiva e espetacular que Blade Runner 2049 nesse ano. O papa da cinematografia, Roger Deakins, parece realmente disposto em transformar cada quadro do filme em uma obra de arte deslumbrante. Alguns elementos são emprestados do original (os reflexos da água nas paredes, a chuva constante), mas outros são tão precisos em sua narrativa estética que constituem quase filmes dentro do filme (toda a sequência em Las Vegas, por exemplo, que parece uma pintura em movimento).

No mais, Blade Runner 2049 é outro acerto na carreira de Denis Villeneuve. Desde a primeira cena, percebe-se que estamos diante de um diretor – assim como Ridley Scott em 1982 – em total controle de sua técnica. Uma das principais qualidades do diretor canadense é contar uma história em um ritmo que deixa entrever as diferentes peças de um quebra-cabeça narrativo ao mesmo tempo em que instiga o espectador a questionar os diferentes significados das intenções dos personagens. É um cinema inteligente e estimulante, que interroga mais que do que afirma.

Em resumo, Blade Runner 2049 consegue o que parecia impossível: expande as temáticas do filme original sem usá-lo como lugar-comum nostálgico. É um filme enigmático, até mesmo provocante, e que transporta o espectador para um mundo aparentemente familiar, apresentando extraordinárias e também assustadoras surpresas. Ou seja, eleva o “estranho” à categoria de obra de arte.

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