Guia Pelo Expressionismo Alemão

– Uma Breve Introdução:

O ano é 1920.  Homens de cartola, mulheres com vestidos longos e saias desbotadas se engalfinham na entrada carregando seus incontáveis marcos em carrinhos de supermercado para comprar simples entradas de papel. Dessa maneira, ingressam, almas penadas buscando nos kinos escapismos baratos, narrativas fantásticas, para afogarem as mágoas de um império náufrago. Espírito quebrado e contorcido contra as miragens de um oásis que nem sequer chegou.

Todavia, por certa magia, enquanto a alma alemã se partia em cada esquina, padaria ou bulevar, no escuro, na ribalta do projetor, um espelho de fumaça pulsava e crescia pelas mãos de Fritz Lang, Murnau, Pabst e tantos outros, pioneiros, desenhistas e trapezistas da tela assombrada.

Premonição, destruição, reflexo, visão, loucura, existem muitos adjetivos cabíveis ao expressionismo alemão. Movimento com mais de 10 anos de duração e sem nenhuma coordenação. Entre esses cineastas não havia manifesto, revista ou acordo, era cada um por cada um e no final, por acaso, por predestinação, cada um deles desenhou, a sua maneira, com sua palheta, o mesmo ovo da serpente, médico que em busca de cura se mergulha no monstro. No desespero, momentos derradeiros de sua inquebrável agonia, a Alemanha enviou um pedido de salvação, que até hoje ecoa em qualquer ácido cinéfilo de papelão.

A cada cena o surreal vai se esvaindo, realidade e ficção terminam por se fundir e se confundir, deixando os vampiros livres, sonâmbulos fora de suas camas e vidros, quebrados. Analisar o Expressionismo Alemão é falar da câmera de gás, delírio ariano temperado com as óperas de Wagner e um super-homem mal interpretado que denigre o cadáver de Nietzsche. Engana-se quem pensa que as sombras desse tempo se perderam com as cinzas do Reich. Retratando o abismo, a certeza e autoritarismo que levam de pezinho em pezinho à loucura, o movimento se tornou não apenas pertinente, como atemporal.

Em momentos como esses em que o mundo vai se jogando numa fria e orquestrada ordem de caos, é necessário voltar a 1920. Naquelas películas há a dor de saber o que vai acontecer e nada poder fazer, observar homens e mulheres de boa índole se converterem/ em farrapos, ovelhas perdidas entre os dedos ágeis e nem um pouco maleáveis, de falsos profetas.

E na tristeza da premonição, os cineastas dessa época inauguraram um novo cinema, pavimentado por paixão. Carregado de técnica, fumaça e destreza. Arte que sabe o que diz, com muita ambição. Essas receitas, de Weimar, Munique e Berlin foram exportadas e construíram mansões e mais mansões pelas áridas rotundas de Bevelry Hills.

O cinema precisa se revirar, se contorcer rumo a tela assombrada. Porque foi ali entre O Gabinete do Dr Caligari e O Testamento do Dr Mabuse, o projetor deixou de ser simples decoração, passou a ser espelho integral de seu tempo, ruína da batalha entre o sagrado e o profano, ficção e realidade. Médico e monstro se dilapidando no fechar das portas, apagar das luzes, antes que a loucura inundasse as mentes e levasse tudo para Auschwitz.

Por isso, com meu pequeno e torto conhecimento elaborei esse pequeno guia, com as obras ao meu ver fundamentais para entender como nós podemos chegar as vias de fato com nosso homem-lobo, insuportável Hobbs interior. Entender como Fritz Lang e Murnau dançaram no precipício que só eles enxergaram, e muitos e muitas se atiraram, pensado ter encontrado um turvo deus.

Todos os filmes aqui citados estão disponíveis com legenda em português no YouTube, por mais árduos, cansativos, mudos e em preto e branco que sejam, eles merecem um lugar na sua coleção de vistos ou para assistir.

Já aviso desde já, posso soltar alguns spoilers, entretanto a poesia dessas películas raramente é o enredo em si, mas sim a maneira desses gênios lapidarem humanidade, em imagens em movimento, relato nenhum, análise nenhuma pode arranhar o sentimento de ver a silhueta do macabro Nosferatu pela primeira vez, ou toda sequência da Torre de Babel em Metrópolis.

Cesso com as explicações, meus por quês e meus pardons. Miro e atiro minhas palavras num portal do tempo, e reproduzo 1920. Os vestidos longos, as cartolas e saias desbotadas. Abismo que permanece pulsando em todos nós

 

– Os Essenciais:

O Gabinete do Doutor Caligari

Direção: Robert Wiene
Roteiro: Hans Janowitz e Carl Mayer
Produção: Erich Pommer

“Você tem que se tornar Caligari.”

Era essa inscrição que pairava nos cartazes promocionais da obra, lá no epicentro do turbilhão, a Berlim de 1920. Para muitos o primeiro filme de horror de todos os tempos, uma matriosca narrativa, em que cada boneca é uma porta trancada num manicômio cinzento. Marco zero do Expressionismo Alemão, resume todo o espírito da coisa. Caligari é um ilusionista, recém-chegado para a feira de um pacato vilarejo. Todavia, não se trata de um daqueles mágicos supimpas, capazes de retirar cenouras de orelhas infantes ou falar com jacarés, Caligari tem um sonâmbulo. Desde sua chegada na cidade, assassinatos se distribuem como vapor d’água no ar, e Frantz um plácido cidadão, fica obcecado com o homem e sua besta humana. Construído num ritmo avassalador e um mistério arrebatador, a obra é taciturna, e nos conduz por um labirinto expressionista de cenários pintados, inigualáveis. Assistir O Gabinete do Doutor Caligari é passear por um quadro de Munch e se perder entre as mazelas e fagulhas do homem.

No controle total entre o ilusionista e seu sonâmbulo reside a profundidade e o seio do autoritarismo, Cesar (o sonâmbulo) foi privado de suas liberdades e verdades, vive para obedecer. Nessa privação de sentidos se encontra a dor da progressiva perda da consciência não só do povo alemão, como do mundo, naufragando como um galeão espanhol em um universo mecânico, regido por engrenagens, cujos dentes rasgam a alma e deixam o corpo mofar entre automóveis.

Em sua defesa implacável da liberdade e seu final inacreditável, a película funda o maior movimento da história da câmera, capaz de dar a tela o “guache da agonia”. O cinema não mais se restringia a mostrar a realidade, era agora livre para explorar perspectiva, a desarmonia entre os desejos do indivíduo e a sociedade da máquina.

Quando a porta do manicômio se fecha, deixando Frantz apodrecer, ficam claras as trancas impostas a nós e como veremos ao final de tudo, não importa o lado da grade, a loucura é nossa sina, nossa mais linda e prodigiosa amiga e inimiga.

Nosferatu

Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Henrik Galeen
Produção: Enrico Dieckmann

Na minha longeva e saudosa juventude, os dias eram uma mistura de eternidade e Bob Esponja. Nunca fui um dos maiores fãs do calça quadrada, todavia me reservava a sacra capacidade de assistir uns 20 episódios e não cansar. Continuar com as pálpebras arregaladas e as gargalhadas afiadas.

Talvez a animação da Nickelodeon tenha me proporcionado um dos maiores tempos perdidos de minha narrativa, todavia a Fenda do Biquini, por mais curioso que seja, foi o começo do expressionismo alemão para mim.

Foi num episódio da segunda temporada, permeado por terror e agonia, capaz de fazer minha atual versão se arrepiar com as lembranças agridoces de Bob preso nos confins da madrugada no noturno e taciturno Siri Cascudo. O toque de confeitaria, no entanto, só chega no final do episódio. Quando tudo está resolvido, o terror dissipado e as crianças e pais aliviados, eis que Lula Molusco, personagem até hoje profundamente identificado comigo, pelo tamanho da narina, indaga:

“-Mas quem apagou as luzes.”

Eis que a câmera foca para uma imagem em preto e branco, uma carranca deformada em um sobretudo negro, pálida como leite virgem, que aos poucos desliza suas mãos pelo interruptor e esboça um sorriso de rara e ambígua melancolia .

“-Nosferatu!!!!”

https://www.youtube.com/watch?v=yorZRDujbd0

E é assim, a referência é jogada e pisada, por quase todos os infantes espectadores da Nickelodeon. Talvez alguns tenham se perturbado, passado noites em branco se perguntando de quem se tratava. Porém nenhuma obsessão se comparou a minha. Passei 5 anos remoendo o nome “Nosferatu”. Quando colocava a cabeça no travesseiro, a imagem, careca com orelhas pontudas, inundava minha mente e apagava as luzes do meu sono.

Guardei-a com carinho, guardei-a com terror.

E assim que meus grosseiros e gorduchos dedos encontraram o Google, eles não tardaram em digitar “Nosferatu”.

Dessa maneira, Bob Esponja ganhou contornos imortais em minha vida. Assim Bob Esponja foi o epicentro de Murnau em mim. Porque, como minha versão 1.0 iria descobrir, Nosferatu não era coadjuvante da Fenda do Biquini, participante da Nick pós 12:00 ou um Vin Diesel deturpado.

Trata-se de um vampiro, com traços aristocráticos e preservando a decadência de uma rugosidade temporal, filho das trevas num mundo de luz. Criatura símbolo, do movimento que passaria a alegrar minhas tardes e decepar meus sonhos pela manhã. Protagonista de uma das mais visionárias e essenciais películas do cinema, que compartilha seu nome e ares demoníacos.

Não acho que Murnau fez a obra pensando que seria referenciada quase um século depois numa animação ianque para meninos e meninas do pós modernismo ocidental. Mas o esmero e a beleza são tão intrínsecas que a homenagem não é apenas justa como bem vinda. O diretor alemão adapta a clássica história do Drácula de Bram Stoker, porém não consegue a autorização da viúva do mestre irlandês. Mesmo com o não na garganta e o tapa de película no rosto, Murnau fez mesmo assim. Não colocou Drácula no título, optando pelo ainda mais memorável e demoníaco título, Nosferatu para intitular a criatura trancafiada em caixões pelo dia e hemocólatra pela noite.

Mas o filme está longe de ser apenas um mera adaptação. Em seu seio está o pioneirismo técnico, apostando em cenários naturais tão novos na época. Com cenas ambiciosas e momentos memoráveis como Nosferatu chegando à cidade de Wisborg, num navio fantasma, a obra retrata o homem ambicioso e distante de qualquer escrúpulo, para satisfazer seus desejos. Expresso na figura trágica de Hutter, um agente imobiliário que na ânsia de cumprir seu trabalho e satisfazer seu chefe, vai ao encontro do conde vampiresco para lhe oferecer uma casa. Assim como uma mariposa ele mergulha no próprio fogo e atrai a figura raquítica e satânica para sua cidade, espalha involuntariamente peste, horror e sangue.

Flertando com história de amor, aventura e o recém fundado gênero terror, Nosferatu é mais uma moldura para a dualidade entre o homem e a besta sedenta por sangue, movida por ambição. 11 anos após a película seria a própria Alemanha a convidar uma figura ainda mais macabra para espalhar peste e sangue pelo mundo. E talvez o bigodinho não seja tão assustador quanto a palidez e a falta de gordura, mas o terror de Auswitch, Sachsenhausen foi muito maior.

No fim a obra prima ainda termina, com uma mensagem de amor, o salvador de Wisborg é uma improvável paixão do vampiro pela mulher de Hutter. Mas não há redenção para nenhum dos dois. O filme sofreu ostracismo graças ao processo pela viúva de Stocker e teve grande parte das cópias queimadas, porém sobreviveu a silhueta perversa do tempo e chegou até o Bob Esponja.

Película mais famosa de Murnau, melhor filme de vampiro da história, Nosferatu é um dos essenciais e particularmente um dos meus favoritos por seu visionarismo vampiresco. Só posso agradecer ao calça quadrada, e ter a certeza que a criatura interpretada genialmente por Max Schreck vai continuar apagando as luzes do meus sonhos.

Metrópolis

Direção: Fritz Lang
Roteiro: Fritz Lang e Thea von Harbou
Produção: Erich Pommer

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está

em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a flolheia

a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que uma pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que uma pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo

a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma

a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas

(Poema Sujo, Ferreira Gullar)

De todos os filmes expressados aqui, Metrópolis é de longe o mais difícil a respeito do qual se dissertar. A obra eterna de Fritz Lang, provavelmente película mais famosa de todo período, se prova um verdadeiro labirinto de luz e sombra, cópia fiel da nascente, de nosso mundo barroco-oco.

A distopia dos arranhas céus é o retrato de um mundo fragmentado entre as dualidades quebradas do rico e pobre, empregado e empregador, proletariado e burguês. Regido a mão de ferro por relógios, correntes, papel timbrado e uma ciência escravizada, deixada de 4 pelo progresso de luzes cada vez mais frias e opacas, Fritz e sua mulher e parceira no roteiro, Thea Von Harbou, moldam com vidros maculados por sangue, ódio e opressão o espelho da modernidade.

Todavia está longe de ser um documento ideológico anti-capitalista, assinado por ressentidos burgueses. Não, Lang e Thea se afastam do manifesto cinematográfico para buscar as linhas borradas, os mundos de papel machê. Os jardins aristocráticos, a bolha social de luxúrias e prazer maquinário. É a hipocrisia do proletário que aceita as correntes porque, tal como gado, só sabe sofrer. E nos dois cosmos, existe a dor de um mundo que não mais se entende, se dilacera e despedaça em ambições messiânicas e mecânicas.

Na análise do macro, a cidade e os arranha-céus do futuro, Lang analisa seu tempo, os desejos das classes e a pobreza da luta que já parecia perder sua fé, na ribalta da Alemanha de 27.  São as engrenagens de nossas máscaras tecnológicas, é a luxuria de querer ser deus, a silhueta da Jaula de Aço envolvendo com seus grilhões nossa nova Torre de Babel. O mundo, em seu sonambulismo vai comportadamente se atirando ao abismo. Num materialismo dialético pungente, a câmera de Lang é o triunfo do cinema como forma de arte.

Se Nosferatu desenhava o homem-lobo, a dualidade entre a besta e o racional, conflito entre os monstros do passado contra a luz da modernidade, Metrópolis corajosamente faz o contrário, expõe o horror da morte da besta carnal e a silenciosa vitória do intelecto racional, pavimentando o mundo de um cimento perfeitamente vazio.

Em seus cenários esplendorosos, estética futurista e a ginóide que entre outras coisas inspirou o melhor personagem de Star Wars, C3PO, a obra é um oásis de auto-reflexão sobre o que fomos, somos e seremos, pelas cruas frestas das persianos dos arranhas céus de Metrópolis, cidade do hoje que um dia foi amanhã e rezemos para que se converta em ontem.

– Os Imperdoáveis:

Caixa de Pandora

Direção: Georg Wilhelm Pabst
Roteiro: Georg Wilhelm Pabst, Ladislaus Vajda, Joseph Fliesner
Produção:  Seymour Nebenzal

Enquanto Murnau e Fritz Lang se dedicavam a jogar dados com a câmera, estruturando um dos conflitos dialéticos mais importantes da história do cinema, o Expressionismo Alemão se aventurava para além de distopias políticas e criaturas mágicas.

Prova cabal disso é o trabalho de Georg Wilhelm Pabst. Enquanto seus contemporâneos se debruçavam sobre as dores e agonias do mundo, a lente do austríaco se recusava a qualquer julgamento e implacavelmente retratava a República de Weimar em seus quadros e reflexos mais lúdicos e melancólicos. Com Caixa de Pandora, Pabst chega ao ápice de sua estética, esmiuçando a luxúria e o prazer da burguesia alemã, já com as garras fincadas numa espiral de festas e excessos. O diretor rabisca como ninguém os violinistas diante do abismo.

A narrativa de Lulu, dançarina e prostituta de luxo é hoje em dia um conto amoral e politicamente incorreto, a maneira como a mulher é tratada, origem dos males do mundo e epicentro único da corrosão dos personagens masculinos é de dar asco. Todavia, é impossível não incluir a película nesse guia, porque Pabst é de uma sutileza capaz de rivalizar apenas com a impecável e magistral atuação de Louise Brooks. Se Falconneti carrega a Paixão de Joanna D’arc de Dreyer nos ombros, a atriz ianque faz o mesmo por essa obra, tornando os 131 minutos de preto e branco mudo, um deleite de ambiguidade, sensualidade e profunda dor. Tudo isso é regido por uma atmosfera mitológica esculpida pelo diretor, capaz de dar vento ao desespero e desejos de Lulu.

Na conciliação entre um primoroso diretor e uma impecável atriz, A Caixa de Pandora se converte numa desconcertante obra sobre amoralidade, feminilidade, sensualidade e o desespero do homem em destruir o objeto de seu desejo antes que se veja destruído pelo mesmo. Numa sexualidade incendiária, movimentos de câmera revolucionários e um pessimismo absurdo, A Caixa de Pandora deixou o nome de Pabst e Louise Brooks fincados na constelação expressionista.

A Morte Cansada

Direção: Fritz Lang
Roteiro: Thea von Harbou
Produção: Erich Pommer

Fritz Lang é o cineasta dos épicos, distopias e tragédias, mas em sua tão hermética cinematografia temos um ar aventuresco, que inspirou diretamente Hollywood em obras como Indiana Jones e Star Wars.

Em A Morte Cansada essa faceta fica ainda mais nítida, com roteiro de sua já citada parceira Thea Von Harbou. A obra trata de amor, barganha, aceitação e acima de tudo a distância/proximidade do mundano e do metafísico. Para isso desliza sua câmera por três períodos diferentes e exóticos da história: califado, carnaval veneziano e China imperial. Tudo isso para que uma mulher salve seu marido das garras da morte.

Em sua protagonista, Lang deixa contornos de ubermensch capaz de desafiar as forças do tempo e espaço para realizar seus prazeres mundanos, distantes de fé. Os arquétipos de Thea/Fritz acreditam cada vez mais em si mesmos e cada vez menos em ficções salvadoras universais.

Sem dar nomes aos seus personagens, a película retrata nas velas da vida o sentimento atemporal de luta contra o plano maior. Lang atira seus personagens para uma batalha contra o sobrenatural e enche-os de vontade de poder. Enquanto isso torna o natural, a figura da morte, em um ser decadente, ansiando por substituição. É nesse jogo de gato e rato, construído pelas provas para salvar seu amado em três diferentes épocas e tempos, que o roteiro encontra espaço para aplaudir o sentimento do ser humano, como força de mudança, capaz de derrubar as velhas leis biológicas e construir suas próprias.

A Morte Cansada está longe de ser um aquário de filosofia Nietzschiana, apesar de repleto de fumaça e luzes de sabedoria milenar, se constrói uma obra divertida e com ares episódicos, com uma estrutura de três capítulos, repetida à exaustão até hoje. A iluminação é bonita, fotografia primorosa e, diferente de obras contemporâneas, o preto-branco mudo não traz fadiga e sim diversão.

Em um dos seus filmes mais sobrenaturais, Fritz Lang encontra espaço para falar da força feminina, humana e a decadência do natural. A Morte Cansada simboliza muito bem a recusa do Expressionismo pelos caminhos do naturalismo e do realismo, em virtude dos sentimentos e mundo interior do ser.

A Última Gargalhada

Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Carl Mayer
Produção: Erich Pommer

Existem obras capazes de traduzir épocas. Scott Fitzgerald é provavelmente o maior exemplo literário disso, com suas sílabas permeadas por Jazz e desiludidas com o sonho americano, o atemporal ianque se consolidou como um dos maiores escritores de todos os tempos com o Grande Gatsby, obra símbolo das festas, champagne e insensibilidade da época.

Se Fitzgerald traduzia os Estados Unidos da América, em A Última Gargalhada, o mestre Murnau é igualmente hábil em ilustrar o dilapidado espírito alemão. Se todas as coisas são metáforas, como diria o ídolo do diretor, Goethe, poucas são tão belas e bem dirigidas quanto essa magistral película. Mergulhando num velho porteiro de hotel, que de uma hora para outra perde o emprego pelo qual tinha tanto amor e zelo, e é obrigado a se juntar à equipe de limpeza, o roteiro de Carl Mayer vai fundo no sentimento de rejeição e humilhação, presente em toda alma da pátria do Reno, desde o expresso de Versalhes.

São nas pequenas humilhações e na incapacidade de aceitar um papel menor no hotel, que a direção de Murnau brilha, chamuscando e explanando dor, A Última Gargalhada evidencia a melancolia de quem de uma hora para outra viu seus desejos mais sagrados e ambiciosos se esfacelarem. O uniforme de porteiro, tão perseguido, marca o prestígio irrecuperável. Nas gargalhadas dos vizinhos ao saber da verdade está a agonia e o orgulho ferido, nesse abismo o porteiro se inclina a reclusão, a Alemanha por sua vez se atirou no ódio e numa salvação de fogo e sangue. Para si e para o mundo.

Fausto

Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Hans Kyser & Gerhart Hauptmann
Produção: Erich Pommer

“O que passou, passou, mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre.”
Goethe

Nada mais justo que a melhor definição para a obra prima de Murnau vir diretamente do autor da matéria prima da película. Fausto não tem a ambição de Metrópolis, os cenários expressionistas de Dr. Caligari, muito menos uma criatura marcante e icônica como Nosferatu, mesmo assim, por sua consistência visual e adaptação miraculosa, é minha obra favorita de todo o período.

Falar de Fausto é falar de corrupção, o homem sábio e erudito, corrompido pelas tentações de Mefisto, atirado num espiral de juventude e hedonismo, universos supérfluos onde todo e qualquer ser encontra altas doses de prazer. A vitória da peste e do horror. E no filme de Murnau está tudo lá, os cavalheiros do apocalipse, as asas do demônio envolvendo a cidade, Fausto preso em seu mundo de ambição e tentação. Todavia, o diretor borrifa na película seu único e inigualável romantismo.

Se Murnau é hábil construindo sombras, é igualmente capaz de modelar a luz, responsável por queimar as paredes e persianas do quarto vazio e desmobiliado, alma humana, em tempos ermos de magos e bruxas. Mais do que uma história de corrupção a obra reluz como uma ode ao amor, como caminho de salvação e derradeira esperança. O sábio, rejuvenescido após o pacto, passeia pelos quatro cantos do mundo, experimenta tudo, entretanto seu vazio só pode ser preenchido por uma garota local.

Muitas vezes me pego em minhas próprias ilusões naifs, genuinamente boba-alegres, por trás do semblante fechado, da roupa escura, sou habitado por uma crença perene nesse bípede ingrato chamado ser humano. E quando não estou reclamando do Sol ou do vento, ás vezes não reprimo pensamentos e distribuo panfletos verbais. Em todos eles transparece essa filosofia romântica, o amor pode nos salvar. Mais do que deus ou demônios, esse sentimento pungente, escalador das entranhas, é a expressão mais pura de nossa espécie. Porque, se nos diferenciamos por poder fazer escolhas, nossa escolha mais linda é amar. A última cartela de Fausto comprova isso, não importa a época ou o grau de poeira, cimento e veneno correndo por nossas artérias, podemos nos liberar, basta olhar para outro e ali encontrar o fragmento perdido de si mesmo.

– Os Derradeiros:

O Golem, Como Ele Veio ao Mundo

Direção: Paul Wegener, Carl Boese
Roteiro: Henrik Galeen, Paul Wegener
Produção: Paul Davidson

Nenhum dos filmes dessa lista, ouso dizer que nenhum filme já feito, terá um víeis premonitório tão forte como O Golem, Como Ele Veio ao Mundo. Mesmo sendo do mesmo ano de O Gabinete do Doutor Caligari, mesmo sendo uma das primeiras obras a compor o robusto acervo expressionista alemã, essa película merece um espaço no final da viagem pela tela assombrada, porque é de uma tristeza, um ódio e agonia tão grandes que chega a ser quase insuportável.

Assim como muitos dos filmes desse guia, a obra traveste seus anseios e intenções numa narrativa fantástica e mitológica. Todavia, dessa vez quem ocupa a ribalta é o povo judeu. Ameaçados de expulsão de um vilarejo, uma espécie de líder da comunidade, com nuances de alquimista-mago, invoca o Golem, enorme monstro de pedra capaz de espalhar fúria e miséria. Os interesses por trás da invocação são simples: impressionar o rei local e impedi-lo de expulsar os judeus da cidade.

Nem mesmo minhas barrocas sílabas saberiam detalhar a hecatombe de esterco que transborda pela tela.

O fascínio que o filme exercia pela audiência da época foi primordialmente devido aos seus efeitos especiais, a verossimilhança e força do sombrio Golem. A cena da invocação é marcante, profusa, daqueles que cavam fundo na esclera. Hoje, nós estamos acostumados com pirotecnia visual e o moderno CGI, dificilmente nos impressionamos com o pioneirismo técnico da película, porém ficam nas quase 2 horas de filme algo muito mais profundo.

Na ilustração do antissemitismo, Golem, Como Veio ao Mundo ganha uma importância tão surreal como a criatura do título. É na ironia e contradição, de a história ter feito a Alemanha invocar seu próprio monstro de coração de pedra, que a obra ganha contornos imortais. Para alcançar seu objetivo, o povo do Reno fez tal qual o líder judeu, brincou com as fagulhas de um gelado fogo e deu luz ao demônio.

No fim do filme a criatura é vencida por sua compaixão por uma fraca e indefesa criança, essa tão emblemática cena mostra o quanto mais absurda e sombria a realidade pode ser comparada a ainda pueril ficção. Porque Hitler não teve pena dos infantes poloneses, holandeses ou até mesmo alemães. Por mais visionário que sejam o Cinema e a Arte, existem criaturas inimagináveis, fabricadas apenas pelas mazelas de nossa história.

Fica de lição: independentemente se realidade ou ficção, a criatura sempre se revolta contra o criador e os sonâmbulos, acordam.

M, o Vampiro de Dusseldorf

Direção: Fritz Lang
Roteiro: Fritz Lang & Thea von Harbou
Produção: Seymour Nebenzal

A convulsão social definitiva de Fritz Lang, apesar do título, não se esconde em subterfúgios mitológicos ou fantásticos. O começo da consumação da ebulição, é um conto negro, sobre um assassino de crianças, controlado por um instinto de matar. Vampiro, mas sem presas afiadas, muito menos vulnerável a luz.  Monstruosidade humana.

Se Murnau mascara a dualidade do homem x besta em seu macabro Nosferatu, Fritz Lang não tem medo de expor, sob sua câmera cada vez mais madura, que essa contradição não se restringe a Transilvânia e sim paira sobre Dusseldorf e todas as cidades do mundo.

Com um clima entre o terror e o noir, M expõe as fissuras da sociedade, utilizando o som (então recém implementado no Cinema), como poucas vezes foi visto. Os ruídos quando o macabro homem se aproxima são ocos e se repetem com cada vez mais força e pungência.

Porém, a obra não é sobre esse psicopata de sangue frio, e sim sobre como a sociedade o encara. A partir do medo, da fobia de perder os infantes, o ódio rola solto e o senso de justiça se deturpa. Inspetores, doutores e a polícia não conseguem conter o ímpeto de caça às bruxas e até mesmo os piores bárbaros e bandidos se juntam a busca desse monstro tão semelhante a eles mesmos.

Por um bode expiatório, pelo medo, a mão se finca no mapa. A super-vigilância paira sobre Dusseldorf e a população é sonâmbula do ódio, dormente pelo desejo de capturar o demônio fonte de seus males. Infelizmente não era, nem nunca foi ou será tão simples. O assassino de criancinhas era fruto das rachaduras presentes em toda sociedade, até mesmo nos homens e mulheres de boa índole. Mesmo assim se afundam no abismo, colocam seus tremores e ambições nessa guerra santa. Mal sabiam que lutavam contra si mesmos.

Nessa convulsão, incapacidade de se auto-civilizar, Fritz Lang em um dos seus mais marcantes filmes, marca o início do fim para o expressionismo alemão e para aquela Alemanha.

O Testamento do Dr. Mabuse

Direção: Fritz Lang
Roteiro: Fritz Lang & Thea von Harbou
Produção: Seymour Nebenzal

“Só nos curamos de um sofrimento depois de o haver suportado até o fim”
Marcel Proust

No final do Gabinete do Doutor Caligari a ordem é restaurada, o doutor em sua sacra sanidade isola seu paciente, habitante de seu próprio mundo de papel. No último filme de Fritz Lang em sua pátria, as certezas se esvaem, o sagrado finalmente é profanado. O Doutor se junta ao paciente.

O expressionismo alemão é em suma uma única narrativa, de como as luzes opacas, do lucro, da ciência escravizada pelo progresso burguês, coagiram o ser a um universo sem porquês. No devaneio de curar as sombras, foram aos poucos corrompendo as lâmpadas, até que nada sobrou, nem vampiro, nem herói mitológico, simplesmente não há salvador. Existem, todavia, monstros, de vestes pudicas e semblantes messiânicos, esperando às margens o navio naufragar no porto.

E é nessa dor de ver o Sol adoecer, as estrelas desabarem e o céu se encher de luas sujas que paira a dor daquele que, para mim, é o maior movimento da história do Cinema. O Testamento do Dr. Mabuse é o fim de uma era, de uma forma de se fazer cinema, de uma visão que iria agora se concretizar fora das telas. A assombração finalmente tomaria corpo, alma e cinzas.

Sequência direta de Dr. Mabuse, O Jogador, a película é a última colaboração entre Lang e Thea, chegando aos cinemas meses após o Partido Nacional Socialista ser atirado ao poder. Em seu último alerta, Fritz continua a história de Mabuse, macabro doutor que hipnotiza a fim de cometer crimes. Agora preso no hospício do professor Baum, encontra-se incapaz de falar, porém está convencido a continuar a hipnotizar e fazer seus sonâmbulos cometerem as maiores atrocidades. A trama tem idas e vindas e aposta num jogo de gato e rato, entre detetives investigando crimes e a obsessão de Baum para com Mabuse.

Está tudo ali, a técnica implacável de Lang, com as memoráveis sequencias do fantasma de Mabuse abrindo as portas do hospício, o roteiro sóbrio de Thea e a volta do aspecto sobrenatural. Porém o que nos importa de fato é o final, o renomado professor, responsável pelo hospício, na sela de seu paciente mais ilustre, rasgando seus papéis, já sem um pingo de si mesmo.

No corpo de Mabuse, Caligari se junta a cela de Frantz. A criatura, o criador, sonâmbulos, hipnotizadores, Hitler, Himmler, faces da mesma moeda, buscando grandeza e se afundando na própria loucura.

No fim, apesar de todo o progresso técnico, da maestria na direção, dos cenários e fotografia, o movimento em si fica, acima de tudo, como prova artística que, na ânsia de curar, podemos terminar por abrir nossas piores feridas. E quando elas começam a latejar, não há para onde ir. Tornam-se enormes fendas a imergir e sugar o que fomos e o que queríamos ser, restando apenas comandantes e soldados, doutores e pacientes, separados por formalidades, unidos pela mesma incapacidade de perceber as teias de aranha os envolvendo.

– Os Alquimistas

 Erich Pommer

O homem mais poderoso do meio cinematográfico alemão entre as décadas de 20 e 30, Pommer foi a força de coesão de um movimento profundamente lapidado em indivíduos. Produtor de obras de Lang, Murnau e responsável até pela alteração do final de O Gabinete do Doutor Caligari, Erich foi o Nick Fury do expressionismo alemão. Começou como representante da produtora francesa Éclair, até finalmente, graças ao capital dela, fundar a DECLA. A partir de sua produtora comandou obras marcantes como O Gabinete do Doutor Caligari, Doutor Mabuse, O Jogador de Fritz Lang e Castelo Vogeloed de Murnau.

A DECLA só ficava atrás da UFA, com quem se fundiu e possibilitou o auge do cinema germânico com obras como Fausto, A Última Gargalhada e Metrópolis que explodiram o departamento financeiro da empresa. Pommer era amplamente conhecido por ceder orçamentos em favor da visão criativa, desagradando profundamente a diretoria da UFA. A ruptura ficava cada vez mais forte, e acabou por fazer com que o produtor mais talentoso da época fosse a Hollywood pela primeira vez, onde trabalhou para a Paramount.

Com a mudança de direção na UFA, diversos emissários foram convocar Pommer para retornar a Alemanha. Ele trouxe na mala novidades como cronogramas de filmagens, filmagem com carros e o pioneirismo do som direto sendo fundamental para a transição do cinema mudo alemão para o cinema com som. A UFA lhe disponibilizou sua própria sucursal dentro da empresa, a “Erich-Pommer-Produktion der Ufa”.

Apesar do sucesso de suas produções ser latente e sua importância indiscutível, após a ascensão do Partido Nacional Socialista, a UFA foi obrigada a rescindir o contrato de Pommer, que partiu imediatamente para o exílio.

Produziu com a FOX e RKO Radio Pictures. Porém, Erich sofreu sérios problemas de saúde, que o impossibilitaram de trabalhar e fizeram sua família sofrer de graves problemas financeiros nos EUA. Pommer e sua mulher se tornaram cidadãos americanos em 1944.

Em 1946, Erich Pommer, retorna à sua Alemanha com a responsabilidade de reerguer o cinema alemão. Amparado pelo governo norte americano, em 1948 produziu 28 películas no lado ocidental. Com a certeza que seu trabalho estava completo, Pommer abandonou o projeto em 1949. Vagando quase sem rumo, o alemão passou a oscilar entre os EUA e a Alemanha Ocidental, sempre fomentando novas ideias e novos projetos. Morreu em Los Angeles em 1966. Será sempre lembrado como construtor do expressionismo alemão e salvador do cinema da pátria do Reno, reconstruindo-o das cinzas.
Georg Wilhem Pabst

Mestre austríaco, Pabst é de origem humilde, filho de um ferroviário, nascido em Raudnitz. A falta de capital nunca impediu o inquieto de buscar sua própria ribalta, ainda sobre a leve brisa da juventude rumou para Nova Iorque com a ambição de se tornar ator de teatro.

Retornou ao velho continente em 1914, pela França. Mal sabia ele da eclosão da Primeira Guerra Mundial, identificado como inimigo, foi retido num campo de prisioneiros. Libertado, parte para Berlim onde o cinema passa a pulsar em si. Na profusão de ideias confusas da época, Georg sofreu influência dos ideais nazistas, algo que se pode notar em suas primeiras obras.

Com sua estreia aos 38 anos de idade, Pabst ficou amplamente famoso por obras em preto e branco, mudas, com caráter profundamente social. Seu ápice e magnum opus foi A Caixa de Pandora, ponto máximo de sua estética crua e câmera sóbria.

Mesmo tendo afinidade com certas ideias do partido de Hitler, o caráter cada vez mais social e anti-burguês de suas obras trouxe a ira do Partido Nacional Socialista, o que o forçou a emigrar.

Viveu para ter o reconhecimento e relevância de sua obra, sendo agraciado com Filmband in Gold, que ele recebeu em 1963. Morreu em Viena aos 82 anos, em meados de 1967, sendo até hoje uma enorme referência em termos de arte, teatro e sobretudo direção.
Thea Von Harbou

De família aristocrática prussiana, a escritora é sem dúvida a biografia mais melancólica de todas as expressas aqui. Em 1905 assinou seu primeiro romance, na luz dos 17 anos. Logo depois partiu para a carreira de atriz, passando por Weimar, Chemnitz e Aachen, onde se casou pela primeira vez.

Em 1920 escreveu seu primeiro roteiro Mistérios da Índia, junto à Fritz Lang com quem viria se casar e iniciar uma das mais prodigiosas colaborações da história da arte, foi com Lang que escreveu Metrópolis e M, o Vampiro de Dusseldorf. Thea complementava Fritz em todos os pontos e nuances, conseguindo dar asas angelicais para a imaginação aventuresca e distópica do austríaco.

As colaborações entre os dois chamaram a atenção da Alemanha e do mundo, e até mesmo de Adolf Hitler, fã confesso de Lang, e que tentou de todas as maneiras atrair o casal para sua ideologia perversa. Thea acabou por se deixar seduzir, o que causou sua ruptura com Fritz. A última colaboração entre os dois foi O Testamento do Dr. Mabuse, obra considerada ilegal e amoral pelo regime que viria a construir o Terceiro Reich.

Thea assinou o roteiro de “Der Herrscher”, obra que celebrava a obediência incondicional às autoridades. Von Harbou é um dos mais tristes exemplos de talento escravizado em prol de interesses políticos, panfletários e consequentemente antiartísticos. Após a guerra foi obrigada a recolher entulhos causados por bombas alemães. Detida pelos britânicos, até conseguiu licença para trabalhar fazendo alguns roteiros e sincronizações de películas. Faleceu em Berlin em 1954, na fina amargura dos 66 anos.

F.W Murnau

É possível dividir grande parte da humanidade e os bípedes ingratos que a formam entre românticos ou clássicos. Os primeiros prezam pelas brasas do sentimento, enquanto os outros se deliciam com as virtudes da razão. No cinema e nas artes, a dicotomia entre romântico e clássico fica extremamente evidente. Truffaut X Godard; Tarkovsky X Béla Tarr; Fellini X Antonioni; são apenas alguns exemplos. O expressionismo alemão teve sua dialética entre Fritz Lang e Murnau.

Nascido como Friedrich Wilhelm Plumpe, adotou Murnau de uma pequena cidade na Baviera. Abertamente homossexual, F.W foi a flama do movimento e conduziu tanto o cinema alemão como o norte americano para outro patamar. Desde cedo já era prodígio, aos 12 anos era fissurado por Nietzsche, Schopenhauer e Shakespeare. Inflamado pelo teatro, estudou Filologia, História da Arte e Literatura. Sua maior paixão era Goethe. Amigo profundo de Franz Marc (grande pintor expressionista) e Elsa Lasker-Schüler (poetisa também alinhada com o expressionismo) via na escola expressionista uma porta para a salvação de todos os sentimentos que pulsavam e se dilaceravam em si. Sempre muito afinado com o romantismo, todos os seus traços e virtudes pairam sobre Nosferatu.

Mesmo assim, alcançou sucesso e status de mestre apenas com A Última Gargalhada, obra de sucesso e primor técnico inestimáveis. Em 1926, parte para os EUA, onde se torna figura chave em Hollywood por A Aurora (Sunrise), sua película mais cultuada que inclusive lhe rendeu o primeiro Oscar de melhor diretor de toda a história. O clamor e adoração por seu primeiro trabalho nos EUA é tanta que a obra sempre figura entre as 10 melhores da história em eleições da Sight & Sound e na Cahiers du Cinema.

Todavia nem tudo foram flores para Murnau no novo mundo. Era conhecido por um temperamento forte e brigava constantemente com os estúdios e produtores ianques, o que inclusive levou seu rompimento com a Fox. Ainda dirigiu Tabu, obra de sagrado primor técnico filmada na Oceania e última da prodigiosa carreira do alemão.

Morreu por um acidente automobilístico, em Santa Barbara, Califórnia. Seu carro estava sendo dirigido por um jovem filipino de 14 anos amante de Murnau. Apenas um pequeno grupo de pessoas presenciou seu enterro em 1931, entre elas Greta Garbo, Emil Jannings e Fritz Lang. Faleceu aos 43 anos e não viveu para ver sua Alemanha ser consumida pelas chamas do ódio e da dor.

Fritz Lang

Gênio, mago, mestre, pioneiro, primoroso na técnica, Lang é a síntese do progresso artístico alavancado pelas borbulhas e faíscas do expressionismo alemão. Conhecido por seu monóculo, jeito excêntrico, por sua longevidade e reconhecimento é sem dúvida o cineasta mais importante do período e um dos mais célebres da história.

Friedrich Anton Christian Lang, era austríaco e filho de um engenheiro civil que ansiava um sucessor na carreira, Lang deixou o pai no vácuo e se mudou para Munique aos 21 anos para estudar pintura e escultura. Seu refinamento estético seria marca de todas as suas obras. Viajou muito para os mais exóticos lugares, como o Norte da África, China e Japão, tomou gosto pelo exotismo e por diferentes culturas o que veio a refletir no tom aventuresco de alguma de suas películas.

Lutou na Primeira Guerra Mundial, onde perdeu um olho e ficou gravemente ferido. Internado, tomou refúgio na escrita de roteiros marcados todos por um forte apelo sobrenatural e demoníaco. A efervescência de Berlin abriu as portas para o jovem Fritz, que chafurdou na tela assombrada, apaixonado pelas ferramentas imersivas do cinema, alcançou o sucesso com Os Espiões. Casou-se com Thea, iniciando seu momento mais proeminente, com as obras primas Metrópolis e M, O Vampiro de Dusseldorf. Aplaudido por seu pioneirismo técnico e sua câmera sóbria, Lang foi obrigado a abandonar a Alemanha porque as garras nazistas ansiavam por se utilizar de seu talento.

Quicando em Paris, partiu para o novo mundo, desencadeando a parte mais turva de sua carreira. Acusado de se deixar levar pelos grilhões dos produtores, Fritz sentia falta de sua Alemanha e de sua antiga colaboradora. Foi um dos primeiros cineastas a trabalhar com Marilyn Monroe e hoje a crítica se arrepende, admitindo a evidente qualidade de seus filmes Hollywoodianos.

Voltou à Alemanha e encerrou a carreira com o fim de Doutor Mabuse em Os Mil Olhos de Doutor Mabuse. Ainda atuou para Godard em O Desprezo, como forma do francês reverenciar um dos maiores mestres da sétima arte. Morreu em Los Angeles aos 86 anos. Influenciou diversos artistas como Orson Welles, Buñuel, Glauber Rocha e Hitchcock.

Se Murnau era o coração do expressionismo, fazendo o sangue e o sentimento pulsarem por sua câmera intempestiva, Lang sempre foi o cérebro, repleto de técnica e inovação. Metrópolis é sem dúvida a obra mais falada e famosa do tempo e em cada blockbuster ou filme de arte um pouco do pioneirismo do alemão está implícito.

– Uma Breve Conclusão:

“Os fantasmas da noite pareciam reviver das sombras do castelo”
Nosferatu

Em todas as obras de Murnau, portas fechando são uma marca nítida e comum. As trancas girando, abismos se alastrando, não posso afirmar as intenções do mestre germânico com suas lindas tomadas, entretanto eu as guardo como eterno lembrete. Não importa para onde rumemos, não importa para onde nosso corpo levite e seja conduzido pelas mãos gentis do vento, uma porta sempre se fecha. Estaremos sempre trancafiados, na companhia de somente nós mesmos.

Para mim o expressionismo alemão é sobre aceitação. Das próprias trevas, de um passado marcado por castelos, agora em ruínas e sonhos de uma cultura transcendente, que se espatifou. Aceitar as sombras em nosso plasma, o sangue fervendo na palma de nossas mãos, a besta em cada um de nós. A Alemanha, mesmo com os alertas de Lang, Murnau e Pabst não conseguiu se reconhecer, abandonou o espelho do projetor e se inclinou à febre do bode expiatório. O país de onde tudo eclodiu é a prova definitiva que não adianta procurar os fantasmas nos outros, por mais fracos e culpados que pareçam, nosso demônio e nosso anjo estão em cada respingo e milímetro de nossa alma e para vencê-lo precisamos conhecê-lo, jamais negá-lo.

Depois de devastada, mutilada e assassinada, a pátria do Reno saiu das cinzas, porém nunca se esqueceu da agonia que causou, das vidas ceifadas por sua ilusão com as suaves notas de Wagner.  Nós nem sequer punimos os torturadores e ditadores, que espalhavam ratos por bocetas inocentes. Alguns ainda reconhecem neles nosso espírito, nossa moral.

Hegel, imortal pensador da Prússia diz que não importam os percalços e campos de concentração, a história chegará ao fim, apesar dos corpos deixados por seus obstáculos, nós, humanos, demasiado humanos, voltaremos ao Éden. E concordo com Hegel. Ainda acredito, apesar de tudo, em finais felizes. Todavia, aprendi com as portas de Murnau, e o exotismo de Fritz Lang que a chave para a sanidade é a memória. Para entender quem fomos. Aceitar o que somos. Alcançarmos o que seremos. Assim e somente assim a silhueta de Hitler permanecerá como cinzas, de um mero obstáculo. Assim e somente assim varreremos as sombras e mesmo trancados e enjaulados seguiremos, pelas fulminantes engrenagens da arte e da história.

“O homem não é a mais do que a série de seus atos”
Hegel

 

Se você chegou até aqui só posso dizer, muito obrigado e te premiar com mais conhecimento. Caso não seja o maior fã de assistir pela internet, recomendo demais as duas coleções do movimento lançados em terras tupiniquins. A mais recente pela Obras Primas do Cinema, uma edição belíssima com extras raríssimos. E uma mais antiga, mas muito bem trabalhada também, pela Continental (DVDS).

Link para todos os filmes indicados:

https://www.youtube.com/watch?v=fMuQpitplU8

https://www.youtube.com/watch?v=SWEuP1OGx6A

https://www.youtube.com/watch?v=LB-awsZAOjk

https://www.youtube.com/watch?v=uxq3J4D1IqM

https://www.youtube.com/watch?v=g2DS4AZsujY

https://www.youtube.com/watch?v=OcLbLuxa8YU

https://www.youtube.com/watch?v=Ow2YQaIcSy8

https://www.youtube.com/watch?v=AOkBHTkKr8k

https://www.youtube.com/watch?v=r9RLbwkVPoA

https://www.youtube.com/watch?v=NxAW2ZyHdhw

 

Indicações literárias:

From Caligari to Hitler (Siegfried Kracauer); também ver o documentário com o mesmo nome.
German Expressionism: Art and Society (Stephanie Barron)
The Haunted Screen: Expressionism in the German cinema and the influence of Max Reinhardt

 

Vídeos para lapidar o conhecimento

https://www.youtube.com/watch?v=ecuQdkBx1ic

https://www.youtube.com/watch?v=ndFysO2JunE

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