Assista!: Violento e Profano (Nil by Mouth)
Inspirado pelo recente Garimpo Netflix: God Save the Queen, produzido por nosso editor-chefe Gustavo David, trago-vos uma inacreditável obra-prima da mesma região. Em seu texto, Gustavo citara, na introdução, o maravilhoso título “This is England” do poderoso diretor Shane Meadows, colocando-o como a quintessência do que é a Inglaterra; da mesma forma, podemos considerar que o Assista! de hoje é um filme que engloba as principais características desse país. Não só esses dois, mas muitos outros poderiam ser listados, é evidente. Inclusive, eu poderia fazer (e farei!) uma série do presente quadro contando com as melhores produções britânicas desse gênero. Aliás, há alguns meses, quando nosso Garimpo era apenas de um único filme, eu escrevi sobre um outro que pode contar para esta “série” que estamos a criar neste momento: naquela ocasião, o contemplado fora “Neds” de Peter Mullan. Hoje, seguimos, portanto, com Violento e Profano, primeiro e (até o presente momento, pois “Flying Horse“ está apenas anunciado) único longa-metragem escrito e dirigido por ninguém mais, ninguém menos do que um dos melhores atores da existência: “the one and only” Mister Gary Oldman.
Todas as obras supracitadas partilham de algumas características. Geralmente, histórias recheadas de violência, que se passam em bairros proletários, protagonizadas pela classe trabalhadora, que precisa lidar com drogas, alcoolismo, violência doméstica, desemprego, etc. São contos do cotidiano inglês, muito próximos uns dos outros, mas cada qual trazendo uma narrativa arrasadora, bruta e visceral à parte. Eu, sinceramente, não desejo qualquer coisa além disso quando vejo um filme. Por esses motivos, os títulos aqui sugeridos sempre (sempre mesmo!) me afetam de tal forma que passam, automaticamente, a fazer parte da minha lista de filmes preferidos da vida. Não me lembro, pensando muito rapidamente, de qualquer um desses que não componham este hall pessoal.
A estréia de Gary na direção, em 1997, trouxe elementos autobiográficos (e, no duro, quando isso não acontece?!) para a criação da história de uma família que é (des)construída pela falta de afeto e pelas ações externas e internas que consomem cada um, individualmente. Sejam elas uma fúria inerente que não se pode ser contida, sejam substâncias que entorpecem o ser e o deixam sem controle pleno de suas ações. Em Violento e Profano, acompanhamos a trajetória do patriarca Raymond (brutalmente interpretado pelo maravilhoso Ray Winstone), que vive com sua família, cuidada pela resignada Valerie (visceralmente atuada por Kathy Burke). Raymond é um daqueles seres abjetos que exala violência, em qualquer olhar, em qualquer fala, ou até mesmo gesto. Entre eles, está o cunhado Billy (encarnado poderosamente por Charlie Creed-Miles), até certo ponto seu parceiro de álcool e drogas. Porém, após um conflito, devido ao vício de cada um, Billy sai de casa à medida em que se aprofunda na perdição grotesca das vielas escuras inglesas.
Temos aqui dois núcleos de narrativa unidos pelos laços familiares e pela montagem impecável de Brad Fuller: os escombros emocionais e psicológicos que vão se formando na casa de Raymond, devido ao seu jeito abusivo de lidar com tudo; e as mesmas ruínas que se fazem imperativas na vida de Billy, sugando consigo a própria mãe, que se vê impotente diante de uma situação de total destruição por parte de seus entes queridos. Uma das essências dessa obra é como as relações se deterioram, mas se sustentam a partir de sua própria auto-demolição. Como se os destroços formassem novos alicerces, ainda que prejudicados e condenados, de uma união que se faz presente, embora pareça distante. Um mergulho profundo em um não-lugar, onde foi varrido para longe uma dicotomia maniqueísta que não pode existir em um conto como este: amor e ódio, destruição e reconstrução, se mesclam de tal forma que não sugerem antagonismos ou a condição do que é antônimo; esses conceitos, misturados, formam um novo, jamais discutido ou elucubrado, mas a todo momento sentido.
Há duas cenas, sobre as quais basicamente todo review que você encontrar também aludirá, que são o ponto máximo da assertiva anterior: quando Valerie, grávida, é espancada brutalmente por Raymond, em uma cena crua, poderosa e avassaladora, permanecendo resignada, após isso; e quando Billy, em um crise incontrolável de abstinência, é levado pela própria mãe para comprar drogas e se injetar dentro do carro de sua genitora, enquanto ela, com feições enrugadas pela tristeza que a comove, contempla o afogamento do próprio filho, outrora um bebê inocente, que se mostra um jovem já maculado demais para ter qualquer ligação com aquele ser pequenino com uma provável risada contagiante revestida de uma felicidade não mais possível. Ainda que de maneira contraditória e pouco sã, o que ela queria, naquele momento, dentro de seu automóvel, era ver o filho tranquilo. Pois este é o instinto natural de qualquer mãe.
Ambas as sequências, filmadas de maneira crua e direta (como é em todo o filme), nos evidenciam o brilhantismo surpreendente (por ser sua primeira experiência em direção) de Gary, que opta por contar essa história poderosa, destrutiva e angustiante de maneira muito próxima aos personagens. Estamos na casa com eles, vivendo em seus cômodos, testemunhando suas quedas, sendo cúmplices em suas escolhas. Gary não nos permite um distanciamento julgador para cada um ali aprisionado por seu frame inquiridor. Não. Somos espancados, surrados, pelas sequências impiedosas de um filme tão realista, que engole sua condição ficcional, para nos deixar, tal qual seus personagens, em nossos próprios escombros emocionais, impotentes e paralisados, a ponto de não mais conseguirmos, sequer, ter o impulso de colocar nada pela boca.
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