Crítica: Ela Quer Tudo (She's Gotta Have It) - 1ª Temporada

Em 1986, Spike Lee se propôs a produzir um filme que retratasse a história de uma mulher independente, bem resolvida sexualmente, de forma poliamorosa até. “Ela Quer Tudo” é um filme de orçamento curtíssimo, filmado em sua maior parte em preto e branco, com pouco mais de 60 minutos e contado com parte da família de Spike e até ele próprio como elenco. Acredito que todos ali eram atores principiantes ou nem o eram. É um filme interessante mas que, indiscutivelmente, encontra-se datado e me refiro a muito mais do que técnica e qualidade de imagem. A narrativa é obsoleta visto que a época em que vivemos trata a mulher de maneira diferente. A grande tônica da produção, a tal da esquisitice de Nola Darling (Tracy Camilla Johns no de 1986) por ter três amantes hoje é vista com olhos mais brandos, tanto por mulheres quanto por homens. É claro que sempre tem os mais conservadores que ainda taxam isso de uma libertinagem e cachorrice sem tamanho. Mas, no geral, a multiplicidade de parceiros para uma mulher solteira tende (espero!) a ser aceita com mais facilidade do que nos anos 80, onde havia muito mais um discurso de submissão e necessidade monogâmica para uma mocinha de bem.

Logo, uma adaptação do filme em forma de série me deixou muito curiosa. É certo de que a personagem de Nola merecia maior profundidade e desde 1987 gritava por isso, tendo a menina seguido muito através da perspectiva masculina do diretor em suas tomadas de decisões. Mas afora isso, que tanto há pra se falar em 10 episódios de meia hora cada? Pescada pela curiosidade, a nova produção da Netflix foi direto para minha lista e deliciosamente saboreei aquela reinvenção rapidamente quando lançada. Nola volta, perfeitamente vivida pela belíssima DeWanda Wise, mais complexa, abarcando vicissitudes para além de sua vida amorosa. Ponto para Mr. Lee e sua equipe de escritores que arrasaram no desenvolvimento de toda a história!

Maravilhosa!

Começando de fininho, a série ameaça ser um ctrl+c + ctrl+v do filme. Nola abre seus braços se espreguiçando na cama e fala com a câmera; o formato de um documentário que se mostra também só filme é mantido. Falas iguaizinhas são ditas pela personagem. Mas calma: eu disse ameaça. Após prestar certa homenagem nostálgica à produção original por meio de falas idênticas, trilha sonora mantida e easter eggs que só quem assistiu há pouquíssimo tempo como como eu vai perceber, a narrativa vai se infiltrando nos personagens apresentados. Como era de se esperar, Nola ainda têm três parceiros: Jamie (Lyriq Bent), Mars (Anthony Ramos, originalmente interpretado por Spike Lee) e Greer (Cleo Anthony). Dessa vez o mais pintoso é Greer – e não é um trocadilho… seus documentos não aparecem na série, mas que homão. Passados pela reciclagem temporal mais que necessária desde os anos 80, os três não pregam mais aquele discurso insuportável de que “uma mulher precisa mesmo é de um homem que cuide dela” e coisa do tipo. Igualmente como Nola, os rapazes ganham maior complexidade e grau intelectual, graças a deus. Até mesmo Greer, que eu particularmente achei um caso perdido no filme, agora é um homem sensível e com algo na cabeça.

Não pense, contudo, que a série mudou sua essência. Os caras têm preservado características que lhes davam um quê cômico. Um mais velho, meio chique; outro porra louca total; por fim, um tremendo metrossexual metido até dizer chega. Homens realistas mas que também entretêm enquanto ficção. O restante do elenco ganhou novas figuras e readaptou outras, que deixo aí pra você, leitor, descobrir – o que posso dizer é que agora, acompanhando a mudança de século, Nola é pansexual. E pra quem não sabe pansexual é, a grosso modo, um bissexual edição deluxe. Pesquisem aí. O ponto é que a personagem está mais que nunca entregue à sua liberdade e feliz da maneira que escolhe levar a vida.

Nola e Mars.

A história toda acontece em 2016 e brilhantemente trata de levar consigo tudo que nosso mundo, 30 anos depois do original de 1986, tem a mostrar. Questionamentos sobre o feminismo, muito válidos, são expostos na roda de conversa de Nola e suas amigas; a realidade da mulher e sua infeliz vulnerabilidade nas ruas enquanto alvo de assédio, entre outras banalidades que vivemos. Essa eu achei o ponto alto de genialidade da série; não se trata mais de um “estudo” sobre uma mulher que transava com mais de uma pessoa. De maneira triunfal e como defendo ser o ideal, o(s) relacionamento(s) de Nola são um detalhe e não definição de sua vida. Agradeço pela trama não mais orbitar em torna de homem ou de, por fim, uma escolha entre os três.

Nola e todos os personagens têm mais voz. Ela deixa de ser uma “aberração”, como era chamada no original, para ser uma mulher procurando sua própria paz, perpassando por seus instintos sexuais mas muito mais focada em seu próprio ser artístico enquanto pintora. Não tem outra palavra que não empoderada para descrever a nova versão da personagem. E, para meu alívio e maior identificação, esse empoderamento não é constante e estável; as inseguranças também fazem parte do caminho da mulher de bem consigo mesma. Ela quer tudo, e o que menos lhe interessa é a aprovação dos três rapazes lá, hein. Nola quer, insaciavelmente, viver e dar vazão à uma alma irreverente, por vezes irritante e impulsiva mas, mais que tudo, disposta a se gostar do jeito que é.

 

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