Crítica: O Matador
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, definiu em seu “Os Sertões” Euclides da Cunha.
Com esse sentimento, o primeiro filme brasileiro da Netflix vai até o Nordeste para contar a história de um camarada que leva o título da obra como sua alcunha principal: O Matador. Na produção estão todos os principais elementos da cultura brasileira: a miséria, a exploração dos pobres promovida pelos ricos (em especial, os estrangeiros que chegaram aqui para pilhar), a umbanda/candomblé, a seca e o velho jeito de se solucionar as coisas dos nordestinos.
Dois pistoleiros adormecidos são surpreendidos por uma criança, em uma dessas terras inóspitas do interior daquela região. Acompanhado pelo pai e o irmão (também pequeno), o guri é intimidado pelos dois capangas. Após o tom ameaçador do “convite” para que a família se sente com ele, o patriarca diz que só sabe contar histórias. Um dos pistoleiros pede por uma e, então, somos introduzidos ao conto principal do filme.
Cabeleira (em boa caracterização de Diogo Morgado) é um bebê abandonado, cuidado por “Sete Oreia” (sete orelhas), que o ensina a “arte” das armas, já que o próprio também é um mercenário. Crescendo em uma região isolada, sem nunca ver ninguém além do seu pai adotivo, Cabeleira se desenvolve quase à imagem-semelhança de um animal. No sertão, só os fortes vivem. De fato. Euclides da Cunha tinha razão. O protagonista, portanto, torna-se um daqueles “casca grossa”. Após uma saída de “Sete Oreia” para um trabalho, do qual nunca mais voltou, Cabeleira resolve ir atrás para saber o paradeiro daquele que cuidou dele a vida inteira.
Marcelo Galvão dirige o filme se utilizando de vários elementos de western, mas sempre trazendo questões sociais, políticas e culturais do Brasil. A própria linguagem do filme, com um quê de americano, apresenta-se conceitual nesse sentido. Aliás, pipoca, do nada, um pistoleiro americano (chamado Gringo) no meio daquele sertão-terra-de-ninguém. Nesse momento, a gente solta um sonoro “WHAT THE FUCK?!”. Marcelo tem aqui, mais uma vez, um uso conceitual, já que a cultura brasileira, a todo tempo, se rebaixa à americanizada. Por isso, há até um gringo no meio da caatinga querendo se fazer valer da riqueza em um lugar de miseráveis absolutos.
Um dos temas centrais, portanto, é este: como a riqueza desvirtua os homens, tragando-os e cegando-os de forma que abandonem tudo por conta de um punhado (não de dólares, dessa vez) de “pedrinhas preciosas”. Cabeleira, em um dado momento atesta o narrador, nunca entendeu, inclusive, como alguém é dono de terra, já que ela estava ali antes de qualquer um ter nascido. Precisa concepção do Matador. Muito embora ele mesmo tenha sido amaldiçoado por esta tentação.
O filme segue vários personagens, por vezes deixando até mesmo o protagonista de lado, para costurar uma história na outra e construir uma imagem estilo “oroboro” (aquela serpente que morde o próprio rabo) em relação aos sujeitos envolvidos na trama. Essa, para mim, é uma belíssima ilustração do que era o sertão na época em que a obra se passa (entre 1910 e 1940): a solução se dava na base do tiro, um tentando engolir o outro até que – em uma simples sugestão – não sobre um para contar o cordel.
Resulta que a jornada de Cabeleira, em busca do paradeiro de seu pai adotivo “Sete Oreia”, não apaixona, nem inspira. Um apanhado de situações, com algumas cenas lindas e outras menos precisas, tem como resultado um filme razoável, que entretém e traz pontos que poderiam gerar leituras ricas (como as passagens supracitadas). Mas, no geral, fica a impressão de que faltou algo para alavancar a obra. Ainda, assim, Marcelo Galvão foi feliz na escolha dos elementos representativos desse Brasil desgraçado e desalmado.
Na crítica de “Amores Canibais” eu havia dito que a diretora criou um universo pós-apocalíptico-distópico, que já vivemos aqui no Brasil, para contar sua história. Já O Matador é o cenário apocalíptico real que este país vive desde sempre.
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