Crítica: Victoria e Abdul - O Confidente da Rainha (Victoria and Abdul)


Das expressões da língua de Shakespeare e das Spice Girls, uma das que mais diretamente mexem comigo é guilty pleasures. Esses “prazeres culpados” são aquelas coisinhas sujas, levemente imorais, de gosto duvidoso ou engordativas às quais alguém não consegue resistir. Queridos leitores do Metafictions, divido com vocês agora um dos maiores guilty pleasures desse crítico que vos escreve. Eu, uma pessoa analisada, um defensor da mais absoluta democracia, um paladino da modernidade, derrubador da tradição, confesso: sou completamente viciado na família real inglesa. Eu não sei quem é o goleiro atual da nossa seleção, mas posso dizer a linha de sucessão da Casa de Windsor e das casas anteriores a ela. Eu não almocei com a minha mãe no Dia das Mães, mas vi “The Crown” em dois dias. Eu já fiz buscas no Google com os termos “Rainha Elizabeth + Reptilianos + Iluminatti +  Lady Gaga”. Culpado.

É por motivos óbvios, além de eu , talvez, ficar um pouco agressivo caso não me fosse dado, que o mais novo filme sobre os royals tenha caído nas minhas mãos. E Victoria e Abdul – O Confidente da Rainha chega na realeza da sétima arte: dirigido por Stephen Frears, british até a medula e que nos deu aquela obra prima chamada “A Rainha” , e estrelado por uma Dame, a brilhante Judi Dench, repetindo o papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar, no maravilhoso “Sua Majestade, Mrs. Brown” (1997), de John Madden.

A história se passa nos anos finais daquela que foi a monarca britânica que reinou por mais tempo, 63 anos e 216 dias, título perdido apenas há dois anos para sua tataraneta, Elizabeth II, a atual rainha. Baseado na história real (ou como uma legenda logo de cara nos avisa “baseado em eventos reais – na maior parte”), o longa conta a bela história da amizade improvável entre Victoria (Judi Dench) e Abdul (Ali Fazal), um jovem escriturário que, por loucuras do destino, é enviado a Londres para participar do Jubileu de Ouro da governante. Cansada já pelos anos e pelos deveres da Coroa, a rainha encontra no simples indiano um confidente inesperado. A amizade devolve a ela a alegria de viver, mas também desperta a inveja e a amargura da corte e da política que a circunda.

Stephen Frears é uma entidade cinematográfica. Sua obra está aí para atestar o seu brilhantismo. Passeando entre gêneros completamente variados – o cara que dirigiu “Ligações Perigosas“,  dirigiu “Alta Fidelidade” e o já citado “A Rainha” –, sua direção é marcada por um esmero, um foco nos detalhes que perpassa cada frame na tela. Não é à toa que ele sempre é citado como um excelente diretor de atores. Atuar exige uma entrega que se completa muito mais satisfatoriamente quando o intérprete pode confiar e, mais ainda, se jogar de alturas enormes sabendo que tem um diretor-rede-de-proteção. Aqui, esse preciosismo se faz presente. Os diálogos são bem cuidados, as expressões são trabalhadas, e o olhar do diretor aparece de forma aguda, precisa, mas não esnobe ou invasiva. Apoiado na deslumbrante direção de fotografia de Danny Cohen e na impecável direção de arte e figurinos, o espectador ganha uma festa para olhos e ouvidos.

Mas, no meio do caminho tinha uma pedra um pouquinho difícil de ser ignorada. Há um problema de tom bastante perceptível na obra, maximizado por alguns momentos do roteiro e pela edição. Em suas quase duas horas, por vezes se tem a sensação de que o espectador assiste a dois filmes: uma comédia inicial que embarca num drama político no final sem que a transição entre os dois seja tão harmônica. Uma pena, numa obra marcada pelo apuro.

No entanto, nenhuma falha se sobressai frente à atuação da dupla de protagonistas. By George! É uma master class de interpretação o que Judy Dench e Ali Fazal fazem na tela. Sabe química? Não, você não sabe se ainda não viu esses dois juntos. Ver uma atriz de 82 anos (um ano a mais que a Rainha Vitória quando morreu) oferecer a variedade de recursos que Dame Dench possui é uma experiência única. Me peguei pensando nas entrevistas dela, prestem atenção, você quase não repara nos olhos dela na sua versão fora de personagens. Mas nos filmes, aqueles olhos flamejam. Ela traz à vida uma Rainha Vitória completamente corporificada, humana, densa, dividida. Impecável. Já o seu companheiro de cena constrói o seu Abdul com uma juventude, um fogo, paixão e dúvida. É lindo ver a atriz veterana sendo acesa pelo ator bem mais novo e o ator jovem ser levantado pelas asas da grande estrela. Magnífico, senhores.

No fim, Victoria e Abdul aponta para dois caminhos. O primeiro é o do dever, do peso que a Coroa traz. É o caminho inglês, imortalizado nas palavras de seu bardo maior, no quarto ato de Ricardo II: “Minha coroa eu sou, mas ainda minhas mágoas são minhas. Você pode minhas glórias e meu estado derrubar, mas não minhas tristezas; ainda sou rei desses “. O segundo suaviza o primeiro, vem da Índia, com seu poeta mais delicado, Rabindranath Tagore: “Uma verdadeira amizade é como a fosforescência: resplandece melhor quando tudo em volta escureceu.

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