Crítica: Black Mirror – 4a Temporada – Episódio Crocodile

Em termos temáticos, Crocodile introduz conceitos apresentados anteriormente em Black Mirror: a discussão sobre a maleabilidade da memória e trans-humanismo já apareceu na 1ª temporada (“Toda A Sua História”) e a construção de uma atmosfera de noir escandinavo já se fez presente na 3ª temporada (“Odiados Pela Nação”). Contudo, se em termos de elementos-chave de distopia e ficção científica Crocodile não apresenta nenhuma grande novidade, o episódio se mostra extremamente envolvente em construir uma narrativa com base em uma espiral de assassinatos e arrependimento.

Dirigido engenhosamente por John Hillcoat (A Estrada e A Proposta), Crocodile arquiteta o que aparenta ser inicialmente uma história sobre responsabilidade moral. Após uma noitada de festas e bebida, Mia (Andrea Riseborough, espetacular) e seu namorado (Andrew Gower) atropelam acidentalmente um ciclista em uma estrada deserta. Eles ocultam o cadáver, mas o passado volta para assombrá-los quinze anos depois, o que origina uma terrível descida ao inferno de novos crimes e culpa. Essa narrativa é entremeada com o topos de ficção científica desse episódio em particular, que é o acesso à memória de modo extra-corpóreo. Nesse caso, isso é possível por meio de um chip que, ligado ao cérebro, é capaz de exibir lembranças recentes. Uma agente de seguros (Kiran Sonia Sawar), ao cruzar o caminho de Mia por meio desse equipamento, vai descobrir o preço a ser pago quando ousamos transformar o passado em texto.

Bem ao estilo do noir escandinavo e das histórias de crime pós-modernas, Crocodile ilustra a falência do paradigma indiciário: o papel do detetive é exercido por uma agente de seguros (figura notadamente relacionada ao trabalho tedioso e burocrático) e a investigação é menos uma coleta de evidências mais uma leitura de textos – nesse caso, imagens de lembranças exibidas em uma pequena tela (me lembrou a famosa cena da investigação que Deckard faz da fotografia em Blade Runner).

Bastante criativa também é a utilização da arquitetura pós-moderna e das gélidas locações na Islândia para construir uma sensação de aridez e desolação. O clima melancólico e opressivo da paisagem parece traduzir o furor assassino (mas profundamente doloroso) da personagem de Riseborough. Também é um episódio bastante interessado nas diferentes sensações relacionadas à memória, como cheiros e sons, e de que forma o passado é menos uma questão de visão, mas de percepção.

No geral, um ótimo episódio, provavelmente com o final mais morbidamente irônico em Black Mirror desde “Urso Branco”. Você nunca mais vai ver um porquinho-da-Índia da mesma forma.

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