Crítica: Black Mirror – 4a Temporada – Episódio Black Museum
Não é de hoje que a ligação da medicina com tecnologia, embebida de um tanto de sadismo, permeia a mente das pessoas. Desde o início do século XIX, quando Mery Shelley publicou sua obra fantástica Frankenstein, até o mais novo Black Mirror, passando, inclusive, por um pouco de História do Mundo Contemporâneo, com as aterrorizantes testemunhas de Josef Mengele, cientistas loucos em uma egotrip bizarra promovem as “criações” mais medonhas, dando luz ao medo encarnado. Dos remendos humanos tornados em letras nos manuscritos da então jovem Shelley, hoje podemos embarcar na viagem grotesca tornada em cenas por Colm McCarthy no episódio Black Museum da nova temporada da série.
O nome do episódio é o mesmo da atração principal de uma beira de estrada, dessas que não há qualquer atrativo em milhas de distância. Em um posto abandonado, Nish (Letitia Wright) para o carro para recarregá-lo com seu dispositivo super-tecnológico. Ao notar o “Internacionalmente famoso” Black Museum, dirige-se a ele para passar o tempo mais rapidamente. Única à espera do local iniciar suas atividades, ela é recebida pelo próprio dono, Rolo Haynes (Douglas Hodge), um gentleman-wanna-be, mas que só conseguiu ser um fanfarrão tipo aqueles personagens que caem perfeitamente em John C. Reilly.
Com Nish, começamos a andar no salão principal do museu, ciceroneados por Rolo, que conta cada peça componente de sua iniciativa. Objetos que tenham a ver com crimes. Se há uma história grotesca por trás, então ali ele estará exibido. No entanto, alguns deles tem uma ligação direta com o próprio proprietário da loja. Isso o permite contar com detalhes acerca de cada elemento decorativo do terror. É que Haynes atuava na área de dispositivos neuro-tecnológicos que permitiam repassar sensações a outros indivíduos. Dessa forma, as pessoas que se relacionavam com esta tecnologia não tiveram o mais feliz dos resultados. Tudo tem um “mas…”, como sempre insiste Nish. E é essa adversativa que completou aquele museu. E junto com Nish, vamos desvendando os principais casos.
Black Museum é quase três episódios em um. Como se três curtas-metragens estivessem contidos dentro de um cenário principal e condutor. Todos eles tendo a tecnologia como o palco para o show de horrores; na verdade, como correnteza que dá caminho para a insanidade do ser humano – esse, sim, o verdadeiro show de horrores. O que conduz cada uma das histórias é o elemento principal comum a todas: Rolo Haynes, quase como um diabo sedutor a confundir as pessoas rumo à degustação do fruto proibido. O semi-sorriso quase cicatrizado na face do homem-demônio denuncia suas intenções.
Seja o conto de um médico (Daniel Lapaine) que quer se tornar o maior de todos e se transforma em uma criatura alimentada pelo sadismo; seja a paixão e cumplicidade de um casal que, para se tornar eterno, convive (ou tenta) na mesma mente, resultando nos maiores conflitos de um casamento dentro de uma só pessoa (quase como uma esquizofrenia – o que, de fato, às vezes é); ou a de um criminoso condenado à cadeira elétrica, obrigado a viver para sempre preso e, como Prometeu, amaldiçoado a enfrentar o seu castigo dia após dia após dia, através de sua consciência digital. Em todos os contos, os personagens estão fadados a uma prisão do consciente, aprisionados pelos grilhões da tecnologia, que permite transferir suas emoções, percepções, visões, para outras mentes, corpos ou até mesmo projeções. Como diz Nish, insistentemente, todas essas histórias têm um “mas…”.
Black Mirror, dessa vez com a roupagem de uma história de terror tragicômica, impõe sua crítica ao mundo atual, no qual as relações, visões, percepções, emoções e identidade estão cada vez mais virtuais e menos reais, de modo que o universo de real, passando a ser virtual, torna-se cada vez mais plástico, curiosamente. Ainda assim, continuamos a mergulhar nas ondas violentas do oceano que nos traga e nos reduz a nada além de um mero sequencial de zeros e uns. E todo esse oceano sendo criado por nós para inundar nossa própria alma, até que não reste mais uma gota de humanidade nela.
“Ei, espere, ao se encolher no escuro você cria o que sempre temeu” (Bruce Dickinson).
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