Crítica: Corpo e Alma (Teströl és lélekröl)


Para Freud, os sonhos seriam as realizações de desejos inconscientes. Em vários textos sagrados, eles são os veículos para as mensagens divinas. Os surrealistas construíram sua arte do material do qual eles seriam feitos. Agora, imagine que alguém sonhe os mesmos sonhos que você durante à noite. Que tipo de conexão se formaria?

Endre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély) trabalham em um abatedouro nos arredores de Budapeste. Ele é um homem recluso, que esconde tanto as suas emoções quanto o defeito físico em um dos seus braços enquanto ela, bela e solitária, é obrigada a conviver com as idiossincrasias e o sofrimento causados pelo TOC. Essas duas criaturas peculiares se encontram e descobrem que, todas as noites, partilham o mesmo sonho: são veados que se encontram na floresta. Eles embarcarão, então, em uma história que mostrará que a realidade é bem mais complexa e que o amor pode ser, ao mesmo tempo, sonho e pesadelo, corrente e esperança. Essa é a premissa de Corpo e Alma, escrito e dirigido por Ildikó Enyedi, e candidato húngaro a uma vaga na categoria de Melhor Filme Estrangeiro nos Oscars.

A primeira e mais nítida qualidade do longa é o quanto ele consegue se sustentar enquanto um filme com voz própria. O diretor constrói uma obra de arte que fala por si e de uma forma bastante única. Mesmo que, por alguns momentos, o ritmo incomode, o espectador se conecta a ele através da sensação de estar assistindo a algo único, o que traz um frescor cada vez menos sentido em tempos de mundo e cinema globalizados. Esse ar de unicidade é um mérito inegável.

Visualmente a produção beira a obscenidade de tão lindamente filmada. A fotografia assinada por Máté Herbai (eu passaria horas escrevendo e imaginando como se pronunciam esses nomes húngaros, essa língua que Chico Buarque, em seu Budapeste, definiu como “a única língua que o Diabo respeita”) faz um jogo de cores frias, de sobreposições e choques de imagens que só podem ser definidas como poesia visual, com um contraste entre o onirismo e o sentimento e a contundência pictórica das atividades do matadouro.

No entanto, o visual ganha todos os pontos pelo uso magnífico dos enquadramentos. Não consigo lembrar de nenhuma produção recente que tenha explorado tão narrativamente os ângulos de câmera. É, de verdade, o enquadramento contando a história. O transtorno obsessivo-compulsivo da protagonista é transferido para a câmera que, alucinada por simetrias, começa a criar quadros dentro de quadros. Dessa forma, as personagens são vistas através de uma geometrização absurda e linda, que explora portas, janelas e outros elementos quadrados de maneira totalmente inovadora.

O roteiro do diretor, apesar de esbarrar em alguns clichês na abordagem das condições psíquicas, ganha toda a força na interpretação da dupla de protagonistas. A escolha dos atores foi acertadíssima, construindo em cena uma simbiose que reforça a ideia principal da narrativa: o corpo e a alma. Morcsányi constrói a solidão do gerente com uma crueza que se corporifica em cada gesto (contido) da personagem. Já Borbély aposta em uma interpretação quase glacial de sua Mária, trazendo para a tela momentos em que a naturalidade stalisnaviskiana é abandonada e substituída por uma teatralidade de gestos quase coreográficos. Uma atuação de encher os olhos e de causar um “incômodo bom”.

Corpo e Alma é uma agradável e forte surpresa nesse final de 2017. É um filme cheio dos dois substantivos que formam o seu título. Além da língua, é bom que o Diabo passe a dar uma olhadinha na cinematografia húngara também.

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