Garimpo Netflix: Hip-Hop

Eu tive a sorte de nascer na mesma família que meu primo Raphael (Moreira para os mais chegados, Dinho para mim). Mais do que essa sorte, eu tenho também o privilégio de poder dizer que nosso laço sanguíneo é nada se comparado ao verdadeiro e incondicional laço de amizade que compartilhamos um com o outro desde a infância. Além de ser um brilhante advogado e dono de uma forma física, digamos, “parruda”, Raphael é também uma das maiores autoridades em Hip-Hop desse país e é por causa dele que eu, metaleiro por vocação, afinidade e formação, admiro e consumo também o Hip-Hop, cujas raízes no underground lembram em muito a autenticidade e honestidade do metal.

Foi com ele que eu fui assistir a pré-estreia do primeiro filme indicado aqui (e para o qual o povo meio que cagou no Brasil) durante o Festival do Rio, é por causa dele que eu já sabia de boa parte das coisas que a 3ª obra indicada esclarece e é pensando nele que apresento a 2ª e mais genial de todas as indicações dessa semana, todas elas tendo em comum esse fenômeno cultural que é o Hip-Hop.


– Straight Outta Compton: A História do N.W.A. (Straight Outta Compton), de 2016, dirigido por F. Gary Gray

Niggaz Wit Attitudes (que é o que significa N.W.A.) é o mais lendário, influente e importante grupo de rap da história. Após o surgimento do hip-hop nas grandes festas do sul do Bronx no final dos anos 1970 e de sua relativa popularização com grandes hits como Rapper’s Delight (que foi adaptado e ordenhado ad nauseam em todas as mídias possíveis), os Estados Unidos se mostravam prontos para um novo movimento dentro dessa cultura. Se no início o principal era a batida e as rimas feitas pelos MCs em cima delas falavam sobre coisas triviais e banais como do prazer de dançar, de como a rima do MC era foda e infindáveis apresentações dos demais MCs do grupo, agora o bagulho ficava muito mais sério, ao mesmo tempo que irreverente, muito mais real, ao mesmo tempo que inacreditável.

Formado por gente como Ice Cube (no filme interpretado por seu filho, O’Shea Jackson Jr.) e Dr. Dre (para ficar só nos que hoje são considerados quase que mitos da cultura popular em geral e não só do hip-hop), o N.W.A. é o principal expoente do gangsta rap, vertente do gênero na qual a letra dos raps se tornava mais do que uma mera demonstração da capacidade do MC de rimar e acompanhar a batida, mas uma poesia urbana absolutamente necessária, relevante e atemporal. Em suas letras, Eazy E e Ice Cube cantavam sobre a realidade do povo negro americano, das vicissitudes enfrentadas pelo negro na sociedade, da violência a que estavam submetidos e, porque não, sobre matar policiais.

O’Shea Junior e O’Shea Senior

Com grande repercussão nos EUA, mas meio que escanteada aqui no Brasil, essa biografia do grupo, ainda que tenha um roteiro (que bizarramente foi indicado ao Oscar) um tanto forçado e exageradamente leniente com Dr. Dre e Ice Cube (não por acaso produtores do filme), mostra com competência toda a trajetória do N.W.A. desde a origem dos integrantes até seu status de mega-grupo, deixando claro a relevância do N.W.A. que, finalmente, conseguia que as queixas e agruras da periferia e do povo preto fossem não só ouvidas, mas entoadas em uníssono por todo o resto do país, independe de cor, religião e grupo social, alavancando o rap para um movimento mundial e que não para de crescer desde então.
Atlanta, de 2016-, criado por Donald Glover

https://www.youtube.com/watch?v=MpEdJ-mmTlY

Donald Glover – além de criar, produzir, escrever, dirigir alguns episódios, estrelar e ser o responsável pela música da série (não só a original como também o que é minuciosamente escolhido para tocar durante as cenas) – é também Childish Gambino, cantor e rapper multipremiado (sua performance antológica de “Redbone abaixo está entre os vídeos mais assistidos na história do YouTube do talk show do Jimmy Fallon), e será Lando Calrissian no filme de Han Solo que já está sendo produzido. Trata-se, portanto, do que dá para se chamar de um artista completo, indo excepcionalmente bem em várias áreas e surfando hoje na crista da onda.

Atlanta, vencedora do Globo de Ouro de melhor série de comédia do ano passado, é a principal prova disso. Trata-se de uma criação totalmente da cabeça de Glover (que não tem parentesco algum com Danny Glover, para minha surpresa), que retrata aquela que é possivelmente a mais prolífica e fervilhante cena do hip-hop nos EUA hoje em dia. A série conta a história de Earn Marks (Glover, papel pelo qual ganhou o Emmy e o Globo de Ouro), um cara que largou Princeton, uma das universidades da chamada “Ivy League“, por um motivo desconhecido e, ao descobrir que seu primo Alfred assumiu o nome Paperboi (Brian Tyree Henry) e se lançou como rapper na cena underground da cidade, ele se propõe a ser seu empresário.

Eu realmente não tenho adjetivos a descrever Atlanta. É a coisa mais refrescante, original e divertida que a televisão produziu em termos de comédia nos últimos anos. Ao mesmo tempo em que toca em questões sensíveis como a segregação do negro enquanto um grupo nos EUA (e, por extensão, no mundo) e do papel da mulher negra na sociedade (em um episódio em que os atores masculinos mal aparecem), ela não está acima de fazer um episódio com comerciais de mentirinha que fazem graça com os estereótipos da comunidade negra americana, por exemplo. O roteiro, assinado por Donald e por seu irmão Stephen, é um primor e a direção, na maioria dos episódios a cargo do diretor japonês Hiro Murai (conhecido diretor de videoclipes), presta homenagens óbvias e excelentes a David Lynch.

Finalizo aqui confessando que esse Garimpo especial sobre Hip-Hop só existe por causa do entusiasmo atiçado por essa série e pela mente genial de Donald Glover. Trata-se de um nerd, uma pessoa com um compromisso quase que obsessivo com a sua arte, um conhecimento enciclopédico do Hip-Hop e uma gana de se aprofundar o máximo no assunto, ao mesmo tempo em que pincela as dificuldades da vida adulta de um jovem negro na cidade de Atlanta. Assistam e, por favor, vamos conversar a respeito!

Hip-Hop Evolution, de 2016, criado por  Darby WheelerSam DunnScot McFadyen

Como falei na introdução, eu particularmente gosto de Heavy Metal. Como bom metaleiro, eu já conhecia o trio de criadores dessa série documental por causa de seus projetos anteriores sobre o metal e seus infinitos sub-gêneros (Metal: A Headbanger’s Journey, Global Metal, Iron Maiden: Flight 666). A última empreitada do trio nesse gênero fora a série documental Metal Evolution e é a partir do expertise obtido com ela que os criadores chegaram a esta excelente Hip-Hop Evolution, concentrando-se exclusivamente no início da cena no Bronx do final da década de 70 até meados dos anos 80 e o surgimento do gangsta rap.

Entrevistados pelo talentoso rapper canadense Shad, Kool Herc, Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa, Coke La Rock sao alguns dos nomes mais seminais da história da música mundial – responsáveis pela criação e disseminação do estilo musical (e de vida) mais popular do mundo atualmente – a respeito de quem 99% das pessoas que curtem o hip-hop nada sabem. Hip-Hop Evolution é um serviço que a Netflix (que tem a exclusividade da distribuição internacional dessa série que é, pasmen, canadense) traz a seus assinantes, educando-os em seus próprios gostos musicais e contando uma parte essencial da História da arte mundial.

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