Crítica: The Square: A Arte da Discórdia (The Square)
“Ado-a-ado!
Cada um no seu quadrado!”
Era isso que berravam os animadores de festa da minha época. Alguns eufóricos, vestindo a carapuça da falta de neurônios, outros com as pálpebras petrificadas no relógio, torcendo a cada novo passo para aquele pesadelo de confete, serpentina e Xuxa terminar. Fato que a dança do quadrado era um clássico da juventude burguesa tupiniquim no começo dos anos 2000.
Durante as duas horas e vinte minutos de pura misantropia sueca, The Square: A Arte da Discórdia trouxe pitadas de absurdismo com seus macacos, camisinhas disputadas, fina flor das hipocrisias de primeiro mundo e um Claes Bang inspirado como Christian. A comédia de humor negro com verniz niilista é irresistível em todos os seus núcleos, tem uma fotografia estonteante, uma direção de arte vibrante, mas por todo tempo no cinema só consegui pensar no animador de festa careca, com duas pizzas de pepperoni no sovaco, clamando entre cusparadas:
“Eu disse ado-a-ado!
Cada um no seu quadrado!”
Porque no fim, o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes do último ano é tão fustigante, incômodo e nauseante quanto essa lembrança sufocante. Por despir não só o homem fetiche ultraliberal moderno, em apenas uma mera caricatura de narciso, expressado tão bem pela atuação irrepreensível de Claes Bang, mas também por ser especialmente cruel ao retratar uma burguesia alienada não nos charutos cubanos ou no petróleo venezuelano, porém na própria arte. O grande trunfo da película assinada por Ruben Östlund, que parece predestinado a suceder Von Trier e Haneke na misantropia sanguinolenta do cinema europeu, é justamente mostrar arte como derradeira morfina nociva existencial da sociedade desenvolvida para se alienar de todo tipo problema de ordem social. A crítica de Östlund se mostra particularmente acertada pelo filme se passar justamente no paraíso escandinavo social-democrata, a Suécia.
O diretor desconstrói seu protagonista símbolo do dito mundo civilizado, examinando em minúcias seu total descaso para com o outro, sua completa paralisia frente ao retorno do homem primata cada vez mais presente na direita truculenta de hoje – Le Pen, Trump, Bolsonaro e tantos outros maníacos. Nessas cenas, onde temos pinceladas de um mundo moderno que daria pesadelos a Simmel, o humor negro jorra solto, em humilhações, desconfortos e chiliques de um egocentrismo tão espesso quanto perdido em seus próprios rebuliços.
The Square é um filme de hipócritas feito sob medida para hipócritas. Vale-se da necessidade da arte em criticar a si mesma e seu público alvo, nesse sentido as duas horas e vinte dois minutos podem se provar tão vazias quanto a minha dança do quadrado. Porque ao não mostrar qualquer espécie de possibilidade de reconciliação entre os valores liberais e as ânsias do instinto humano, Ruben deixa transparecer na amoralidade de todas as indústrias (destaque para a do marketing), um profundo estado entorpecente dos déspotas esclarecidos que controlam nosso mundo. O quadrado que dá nome ao filme é uma peça de arte, para estimular o altruísmo, todavia só termina por provar, em meio a todas as humilhações, escárnios que o filme se delicia em mostrar com a câmera estática, nosso atrofiamento sensorial, na metafísica, na arte, na aparência, pretensiosas metáforas de sofisticação. Nos nossos quadrados, como um dia mandou um animador de festa infantil.
Todavia, diferente daquelas tardes nos playgrounds de imensos condôminos, não conseguimos ver o abismo entre o sujeito e a sociedade, deixamos o mundo à mercê, enquanto embarcamos em nossas vãs existências. O altruísmo só precisa existir comigo e para mim. Se conseguiremos elaborar uma via de mão dupla, transcendendo nossos primatas ocultos, isso só o tempo dirá. Por enquanto, resta apreciar a luz, ainda que misantrópica, do quadrado mais bonito do mundo: a tela de um cinema.
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