Garimpo Netflix: A Insustentável Presença do Passado

“Jogue fora o seu presente, você tem vivido no passado” canta Bruce Dickinson em uma de suas grandes músicas. 

Garimpo desta semana traz títulos cuja atmosfera parece mergulhar no canto do maior de todos os tempos, o supracitado Bruce. Com histórias que lidam, ainda que de maneiras diferentes, com o passado, vemos em cada uma como é impossível deixá-lo para trás. O homem é um ser histórico, diferente do animal que – segundo Nietzsche – vive cada momento como se fosse único, não sofrendo as angústias do passado, nem projetando o que poderá advir no futuro. E o homem inveja o animal por isso, já que ele é constantemente afetado pela História.

Nesses três filmes aqui indicados, iremos entender como o passado de cada personagem afeta o seu presente, impedindo-os de seguir em frente: sejam brincadeiras de péssimo gosto durante a infância, sejam feitos de seus antepassados ou mesmo sua personalidade aparentemente imutável, o que fizemos ou o que fizeram conosco tende a permanecer, pois somos seres históricos. Temos memória.


O Presente (The Gift), de 2015, dirigido por Joel Edgerton.

O excelente ator Joel Edgerton faz sua estréia na direção de longa-metragem com o valioso filme O Presente, cujo roteiro é também de sua autoria. Nele acompanhamos a história de um casal jovem, Simon (Jason Bateman) e Robyn (belamente atuada por Rebecca Hall), em mudança para a cidade onde ele crescera. Nessa nova fase da vida dos casados, dramas do presente (como a tentativa de superação da perda de um filho não nascido) começam a se mesclar com dramas do passado, quando a curiosa figura de Gordo, “the Weirdo” (em marcante atuação do chefe Joel Edgerton) – Gordo, o esquisitão – encontra os novos moradores e passa a se tornar frequente no dia a dia de ambos, como um visitante indesejado.

Ocorre que Gordo estudou com Simon e cada qual teve um desenrolar de vida bastante oposto ao outro. Na realidade, suas perspectivas já eram bem afastadas desde o colegial. Resulta que o modo de ver americano demarca que o que você é na escola dita o que você será pelo resto de sua vida. E o que Simon fora na escola começa a ser revelado por Gordo, de modo que cada personagem volta a assumir o papel de costume, décadas atrás. No meio desse vulcão à beira de uma violenta erupção, Robyn tenta entender as razões dos “colegas de escola”.

Bad Day for the Cut, de 2017, dirigido por Chris Baugh.

https://www.youtube.com/watch?v=fsKhGWi97lo

Bad Day for the Cut é um filme norte-irlandês, que conta a história de um recatado fazendeiro de meia-idade, Donal (em ótima atuação de Nigel O’Neill). Seus dias são iguais: cuidar do terreno, da mãe – a simpática senhora Florence (delicadamente interpretada por Stella McCusker), por quem nutre sincero amor, e beber umas cervejas no bar. No entanto, a vida tranquila do quase ermitão Donal é abalada quando Florence é atacada por dois sujeitos, deixando-a sem vida. O fazendeiro precisará vencer o drama que surge, enquanto tenta conectar suas lembranças, já que testemunhou a fuga de um dos criminosos.

Ao perceber que ele mesmo é o próximo alvo, Donal – forçadamente – sai de casa em uma jornada de vingança, que o fará descobrir histórias escondidas do passado de sua família. Como um oroboro – a figura da cobra mordendo o próprio rabo – contos de vingança vão emergindo durante a saga simplória de um homem simples, que apenas busca dar o troco para quem quer que tenha atingindo sua vida, a priori sem qualquer motivo aparente. E, tal qual a aludida imagem, destroços de si mesmo vão se produzindo enquanto memórias vão se revelando.

Krisha, de 2015, dirigido por Trey Edward Shults.

Sabe aquele parente que, nas festas de família, sempre causa um arrepio nos demais pela tensão de algo sair errado a qualquer momento? Sua simples presença é uma espécie de detonador, já que, em questão de segundos, o clima da festividade pode virar para o seu oposto? Pois bem. Este filme nos traz essa ilustração.

Krisha (nome da obra e da personagem interpretada energicamente por Krisha Fairchild) é um longa-metragem de Trey Edward Shults (inspirado em seu curta homônimo, lançado um ano antes). Inclusive, o próprio diretor interpreta um personagem chamado Trey (repare no nome dos atores e seus personagens, nesse caso). O filme lida com a delicada relação de Krisha e seus familiares. A tentativa de esquecer um passado nada distante e colocar as coisas no lugar é a motivação para o jantar de Ação de Graças na casa de sua irmã. Trey (o diretor e não o personagem) nos coloca dentro daquela casa, onde todo o filme se passará (algo que ele gosta de fazer, pois vemos se repetir em seu notável Ao Cair da Noite”, resenhado aqui no site). Conversas habituais, mas com carga de tensão a todo o tempo, junto com uma trilha sonora irrequieta, vão nos convidando para entrar no olho do furacão, prestes a arrastar tudo. É a exata sensação descrita no primeiro parágrafo.

Como um relógio que conta os minutos para uma bomba programada explodir, Krisha é colocada à prova em cada um dos olhares, diálogos e cômodos daquela casa. Essa é a sua chance de mostrar que o que fizera pode ser esquecido e uma nova história ser reescrita. Será que agora essa história se repetirá, porém como tragédia?

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