Crítica: Altered Carbon

Atribuído comumente à estupenda obra “Neuromancer”, de William Gibson, mas com aspectos já observados anteriormente no trabalho de lendas como Phillip K. Dick, o subgênero da ficção científica batizado de cyberpunk se notabiliza por uma dobradinha muito simples: low-life / high tech. Ou seja, gente vivendo na mais absoluta merda, mas com acesso a tecnologia de ponta com as quais sequer somos capazes de sonhar hoje em dia. Em geral, obras do gênero são passadas em futuros distópicos, com governos ditatoriais e/ou dominado por grandes corporações e com o uso da tecnologia como uma ferramenta de dominação ao mesmo tempo que é a única arma de revolução.

Estas características estavam mais ou menos observadas no clássico “Blade Runner” e, para o público em geral, aquela identidade visual e sensação passados pelo filme de Ridley Scott epitomizam o que é o cyberpunk. Foi este filme que criou a identidade visual característica do gênero, como cidades superpopulosas, carros voadores, uma fotografia suja, gente vivendo na miséria e a presença de alguns magnatas que mandam em tudo, ainda que se desvie um pouco do binômio apontado acima.

Altered Carbon, a série, pega essa identidade visual e a repagina, deixando clara sua inspiração em “Blade Runner”, ao mesmo tempo em que escolhe usar muita, muita cor mesmo para contar a história de Takeshi Kovacs, um agente especial de uma organização terrorista que está servindo uma pena perpétua há 250 anos e é trazido de volta para desvendar um assassinato. Em Altered Carbon, estamos num futuro tão longínquo que sequer é possível sentir qualquer incredulidade ante às tecnologias apresentadas (muito embora o pessoal ainda se vista se forma muito semelhante à nossa), fazendo com que boa parte delas pareçam magia para nós, mais ou menos como esse meu smartphone vagabal pareceria mágica para qualquer um de 500 anos atrás.

Neste futuro, a humanidade se espalhou pelas estrelas e a morte foi quase que erradicada com o advento dos “cartuchos” corticais, uma espécie de pen drive que é instalado no sujeito ao fazer 1 ano de idade e onde a consciência da pessoa é armazenada. Assim, a não ser que seu cartucho seja danificado, você poderá sempre ser “reencapado” em um novo corpo, ou “capa”, inventando-se, assim, a imortalidade.

Esta tecnologia já existe há pelo menos 400 anos quando Takeshi, um homem asiático, é reencapado em um corpo que nada tem a ver com o seu pelo ziliardário Laurens Bancroft (James Purefoy) para que ele solucione o mistério de seu próprio suposto assassinato. Laurens está vivo há 360 anos e é um “Matusalém” (o personagem bíblico que viveu quase mil anos), um dos poucos ricos o suficiente para ficar trocando de capa de tempos em tempos e, assim, alcançar a imortalidade, o que lhe permite acumular ainda mais riqueza e poder

Estamos aqui diante de um título que nos trará profundos questionamentos filosóficos e morais – já que é só quando não há medo da morte que o ser humano é livre para ser aquilo que ele pode ser, por mais aterrorizante que isso possa fazer com que ele se torne -, que vai fazer com que coloquemos em cheque a nossa própria visão da ética, da moralidade, da nossa existência e da questão divina, certo?

Errado, infelizmente. Altered Carbon parte de uma premissa realmente fascinante, mas contenta-se em usá-la tão somente como um raso pano de fundo para MUITA violência em um seriado absoluta e inegavelmente estonteante, mas que é também formulaico, tem uma direção desastrosa e um roteiro que, ainda que tenha boas sacadas no que se refere às reviravoltas da trama (o que se deve muito ao grande grau de fidelidade ao livro), apresenta diálogos que parecem ter saído diretamente de uma novela mexicana, sendo o grande diálogo final algo até mesmo constrangedor.

Saída de uma novela mexicana também é a co-protagonista da série, a detetive Ortega. E digo isso literalmente, porque ela é interpretada por Martha Higareda, uma atriz mexicana que fez realmente várias novelas em seu país e que parece ter uma cabeça de gato no lugar da humana, tamanha é a quantidade de cirurgias e procedimentos cosméticos que seu rosto repuxado e suas maçãs do rosto artificialmente proeminente denunciam. Isto não seria problema algum se ela conseguisse carregar um personagem com a importância de Ortega na trama, mas em momento algum isso acontece, o que torna a caracterização de uma detetive badass numa mulher de um metro e meio e toda botocada nada crível. Isto, calculo, vai acabar sendo ignorado por muita gente por causa de suas cenas de nudez que, como é o resto da série, são lindas.

Ainda que alguns dos demais membros do elenco façam um trabalho minimamente competente (com destaque para Chris Conner, como a Inteligência Artifical que emula Edgar Allan Poe e é o hotel onde Takeshi se hospeda), toda a trama é prejudicada pelos atores escalados e pela direção deles, que peca em várias de suas decisões. Um exemplo disso é a diferença entre os dois Takeshis. A capa original de Will Yun Lee ou o reencapado de Joel Kinnaman. Enquanto Kinnaman está correto, Lee o interpreta com convicção apenas nas cenas de ação, vacilando nas dramáticas.

E, por falar em cenas de ação, aqui jaz um dos pontos positivos do filme. Salvo quando o roteiro cai nos clichês do gênero que já encheram o saco – como por exemplo as milhões de vezes em que Takeshi é rendido e inexplicavelmente o seu oponente não o mata, deus ex machina a dar com pau e cronômetros que param faltando um segundo -, a ação é muito bem coreografada e estilizada ao extremo, com o uso copioso de sangue em CGI, conseguindo manter com louvor a mesma aparente obrigatoriedade dos produtores de fazer uma obra visualmente impressionante.

Altered Carbon deixa um gostinho de potencial desperdiçado. Se seus primeiros episódios são interessantes porque começam a apresentar, em um 4K realmente de cair o queixo, toda a mitologia daquela realidade verdadeiramente fantástica na acepção da palavra, é no desenvolvimento da trama que a coisa desanda, com dois episódios realmente ruins no meio do caminho. O visual, contudo, continua lindo o tempo todo.

Se você está procurando uma série divertida, com uma formuleta que vai te garantir pelo menos uma grande e bem feita cena de porrada ou tiroteio por episódio (além de uma profusão de nudez frontais masculinas e femininas), então Altered Carbon é perfeito para tanto. Mas, se você encarar a obra como o hard sci-fi no qual ela é inspirada, então você provavelmente vai ficar frustrado com a falta de profundidade no desenvolvimentos dos relevantíssimos temas introduzidos e largados de mão logo de cara.

O potencial está aqui e, considerando que Richard K. Morgan (esse K. não está aqui a toa) escreveu mais dois livros estrelando Takeshi (sendo este o primeiro), resta-nos aguardar as 2ª e 3ª temporadas da série e torcer para que elas venham para explorar ao máximo este universo realmente fascinante.

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