Crítica: A Forma da Água (The Shape of Water)

“Quando o amor vos chamar, segui-o,/ Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;/ E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,/ Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;/ E quando ele vos falar, acreditai nele,/ Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos/ Como o vento devasta o jardim.”

Os versos de Khalil Gibran, em seu livro O Profeta, exibem uma das mais desconcertantes e belas das muitas definições que a arte fez do amor. Eles apontam para seu aspecto mais feroz: a incapacidade que nós, humanos, temos de fugir dele, ainda que o preço a pagar por suas maravilhas (e que maravilhas!) seja muito alto. E é sobre o amor que Guillermo del Toro se debruça em seu mais novo filme, A Forma da Água, campeão de indicações (13) e favorito ao Oscar de melhor filme este ano. É sobre o amor, mas não apenas.

No início da década de 60, em plena Guerra Fria, Eliza (Sally Hawkins), uma faxineira muda de uma instituição secreta do governo americano, descobre o amor e um sentido mais amplo para sua vida na improvável figura de um ser anfíbio (Doug Jones), aprisionado por Richard Strickland (Michael Shannon), o perverso e pervertido chefe de segurança do local. Contando apenas com seus sentimentos e com a ajuda de Giles (Richard Jenkins), seu solitário vizinho e figura paterna, e de Zelda (Octavia Spencer), sua falastrona e protetora colega de trabalho, ela vai desafiar o mundo e a própria vida para viver seu (disfuncional) conto de fadas. Esse plot rocambolesco, digno da Sessão da Tarde em seus melhores dias, vira uma obra-prima nas mãos hábeis e sombrias do Señor del Toro.

Se em “O Labirinto do Fauno (2006) o diretor já exibia suas credenciais de excelente contador de história e dono de uma visão única, A Forma da Água reitera e eleva ao mais alto nível estas credenciais. É cinema narrativo da mais alta qualidade. O roteiro extremamente bem escrito em parceria com Vanessa Taylor aposta na clássica estrutura em 3 atos, bem delimitados na história, mas o olhar de del Toro explicita que, para fazer bom cinema, nem sempre se precisa reinventar a roda ou investir em pirotecnias duvidosas (aiai vontade de citar nomes). Competência e talento continuam sendo uma parceria de sucesso. O filme cria uma atmosfera de fábula, de conto de fadas, mas amplifica as possibilidades do gênero ao investir em ousadas discussões temáticas e visuais.

Visualmente falando, a obra é estonteante. O design de produção é um dos mais bonitos do cinema contemporâneo. Os cenários dão vontade de pedir visitas guiadas, a direção de arte é de um esmero requintadíssimo, os figurinos falam. Elevados pela sofisticada fotografia de Dan Laustsen e pela trilha fabulosa de Alexandre Desplat (adendo: fabuloso é pouco. A trilha é uma montanha russa de emoções, é triste, é alegre, é engraçada, é sombria e tem até Carmen Miranda, além de You’ll Never Know, uma das canções mais bonitas que já ouvi no cinema) e por uma edição perfeita, que ritmiza com maestria a produção, A Forma da Água se firma como ponto de excelência em todos os aspectos técnicos do cinema.

No quesito atuações o filme também dá um baile. Sally Hawkins tem uma das maiores performances do ano com sua Eliza Esposito. Utilizando-se da linguagem de sinais, ela constrói toda a fragilidade e força de sua protagonista. Cinco minutos na tela e o espectador já cria um vínculo com ela, já sofre e torce pela improvável princesa do conto. Selo Meryl Streep pra ela! Seus coadjuvantes não ficam atrás. Richard Jenkins brilha de uma forma completamente entregue e frágil. Seu Giles é um homem marcado pela solidão e vítima da maneira como nossa sociedade trata os que não se encaixam na maioria. Temos um ator totalmente entregue e exposto em tela, crua e lindamente. Octavia Spencer e Michael Shannon mostram mais uma vez porque seus trabalhos têm sido tão celebrados no circuito de premiações nos últimos anos. Ela empresta uma força que transforma sua personagem em muito mais que um alívio cômico e escada para a protagonista e ele amplifica o escopo de um vilão que poderia soar bastante cartunesco.

No início deste texto, dizia que a produção era sobre o amor, mas não apenas. Isso coloca A Forma da Água em uma posição bastante interessante na temporada.  Ele toca em questões espinhosas da sociedade. É sobre amor, mas também é sobre excluídos. É sobre amor, mas é sobre xenofobia. Desvela os preconceitos raciais, sociais e sexuais. E é, também, uma declaração de amor ao Cinema e à Old Hollywood, com suas citações lindas a filmes clássicos. Guillermo já provou em sua carreira que não dá ponto sem nó.

Isso explica, talvez e a despeito de todas as suas óbvias qualidades já descritas, o seu favoritismo na estatueta de melhor filme. Nos últimos anos, no frigir dos ovos, a Academia acaba se dividindo entre dois filmes: um que mostre o trabalho visionário de um cineasta e um outro que toque numa questão importante. Na briga visionário X importante o importante tem ganhado (“Moonlight” sobre “La La Land”, “Spotlight” sobre “O Regresso” e “Mad Max”, “O Discurso do Rei” sobre “A Rede Social”, “Crash” sobre “O Segredo de Brokeback Mountain” – opa, esse não, esse foi estupidez mesmo.). A Forma da Água  consegue ser as duas coisas. Resta saber se a Academia também acha isso.

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