Crítica: Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi (Mudbound)

Mudbound, em tradução livre, quer dizer algo como fadado à lama, algo inexoravelmente ligado à lama com um laço tão forte que não há como rompê-lo. E esta é a tônica de tudo que este fantástico longa tenta nos passar. Mais do que mostrar o quanto o racismo destina à lama todas as relações que dele sofrem, Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi também se propõe a ir além, demonstrando que é o preconceito em geral e a própria aceitação do ser humano dos papéis impostos a si pela sociedade que destinam todo esse planetinha repleto de lama a chafurdar nela.

Produzido independentemente, a Netflix comprou os direitos de distribuição do filme após vê-lo no Festival de Sundance de 2017 e, reconhecendo a joia que tinha em mãos, não se limitou a lançá-lo em sua plataforma de streaming, lançando-o simultaneamente em poucos cinemas em Los Angeles e Nova Iorque, assim atendendo a exigência de Academia para que filmes concorram ao Oscar. Sem dúvida a Netflix entendeu as reais chances que o longa teria de ser indicado, as ramificações inéditas que isto teria e colocou toda a sua máquina para funcionar com este objetivo. E é uma vergonha que às suas 4 indicações (roteiro original, atriz coadjuvante, canção original e cinematografia) não estejam adicionadas as indicações a melhor filme, direção e ator coadjuvante para Rob Morgan.

Contando com um roteiro tecnicamente perfeito e sofisticado, Mudbound – tomando como base a história de duas famílias, os brancos McAllan e os negros Jackson – é uma grande alegoria para todas as relações de poder da humanidade de hoje, de ontem e de amanhã. Os McAllan são pessoas da cidade que se mudam para uma fazenda no delta do Rio Mississipi, zona historicamente efervescente no que se refere a conflitos raciais. Eles não se mudam por motivo nenhum que não porque o provedor, Henry (Jason Clarke), assim deseja, ignorando qualquer opinião que sua esposa, Laura (Carey Mulligan), possa ter quanto a isso. Por sua vez, Henry se muda muito porque ele sente um dever para com seu pai, Pappy (Jonathan Banks), já deixando claro aqui, sem que qualquer nesga de preconceito racial ainda tenha sido abordada, o quanto para além do racismo que o longa vai. Laura aceita seu papel de esposinha, enquanto que Henry aceita seu papel filial de quem deve tomar conta do pai.

Estes “deveres” dos brancos McAllan ironicamente empalidecem em comparação ao que os negros Jacskon entendem como seus deveres e aqui está o brilhantismo do roteiro que faz por merecer sua indicação e, torço, sua conquista do Oscar. De forma orgânica e natural, sem apresentar situações forçadas ou maniqueístas, percebemos que é só colocando as expectativas, ambições e sonhos de brancos e negros lado a lado que veremos o quanto cruel, insidioso e nefasto é o racismo e qualquer outra forma de preconceito, em especial quando isso ocorre no sul americano da década de 40. Enquanto as filhas de Henry são criadas para serem princesas, a pequena Lily May Jackson (Kennedy Derosin) sonha em ser uma estenógrafa, ao que seu irmão mais velho Marlon (Frankie Smith) afirma: “Até parece que eles vão contratar um estenógrafo de cor.”

Dee Rees, com muito aprumo e esmero, desconstrói o mito da meritocracia com esse contraste tão evidente quanto uma tinta preta numa tela branca. É o mesmo contraste observado na recepção de Ronsel Jackson (Jason Mitchell) e Jamie McAllan (Garrett Hedlund), dois soldados que retornam da 2ª Guerra Mundial para suas famílias. Ainda que ambos sejam recebidos com alegria, é apenas o branco quem precisa agir como um herói, sendo fortemente criticado por seu pai por estar claramente sofrendo de estresse pós-traumático e por não ter orgulho algum em ter matado incontáveis alemães. O negro, por sua vez, é recebido com festa pela família, que dele não quer mais do que um abraço e a felicidade de sua continuada existência.

É por meio da relação entre esses dois, estreitada e cultivada por causa da dor e sofrimento da guerra que os uniu também inexoravelmente (e ignora credo, cor ou status social), que uma alternativa a isto tudo é enxergada, ao mesmo tempo que é a extemporaneidade dessa relação que a torna uma anomalia que vai mudar para sempre a vida de todos aqui, para o bem ou para o mal.

Mesmo que a obra peque um pouco na edição, o que acaba por prejudicar seu ritmo (fica aqui um salve para a tia do ritmo, Marco Medeiros), a direção de Dee Rees é primorosa e é abrilhantada pela cinematografia inacreditável de Rachel Morrison, numa aula de como tornar a lama e a sujeira em algo belo e desenvolvedor de narrativa. O mesmo vale para a interpretação estelar de todo o elenco, destacando-se aqui Carey Mulligan como a resignada Laura, Mary J. Blige como a mãezona Florence (papel pelo qual concorre ao Oscar de atriz coadjuvante) e, principalmente, a Rob Morgan como Hap Jackson, o patriarca Jackson que carrega consigo um fogo violentíssimo, apaziguado tão somente pelos grilhões da sociedade.

Mudbound é Cinema necessário e, ainda que esteja, sim, surfando na onda do politicamente correto que vem tomando conta do mundo e da Academia em especial, ele se ergue acima de qualquer crítica que possa ser feita nesse sentido ao pegar um tema delicado como o racismo e usá-lo não só para falar sobre preconceito em geral, mas também sobre a própria condição humana enquanto ser social.

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