Crítica: Mudo (Mute)
Um ex-fuzileiro naval que teve as cordas vocais danificadas pelos estilhaços de uma granada que trabalha como barman embarca numa violenta corrida contra o tempo quando sua namorada desaparece misteriosamente em uma Berlim futurista dominada pelo crime organizado…
Fosse essa a premissa do filme Mudo (Mute no original), lançamento do dia da Netflix, talvez o filme fosse bom. Mas não é (nem essa a premissa e nem bom). Nesse confuso filme de ação (só que sem muita ação) Leo, o barman mudo e Amish (??!!) de um strip club numa Berlim cyberpunk se apaixona por uma garçonete com um passado duvidoso que desaparece repentinamente. Pra quem não sabe, os Amish são um grupo cristão de origem suíça que se opõe à evolução tecnológica e científica, vivendo como se ainda estivessem no século XIX. Usam charretes e lampiões a óleo, vestem-se de maneira austera, homens com ternos pretos e camisas brancas, calças sem zippers ou elásticos, sempre presas por suspensórios pretos, mulheres com vestidos longos e uma touquinha branca que cubra seus cabelos.
Leo tem suas cordas vocais destruídas num acidente com uma lancha ainda criança… e meus problemas com o filme começam já aí. Os Amish não andam de carro, não usam eletricidade ou qualquer tipo de máquina que não seja movida por força muscular – seja humana ou animal. O que diabos um grupo de Amish estava fazendo numa lancha? Ah, mas a lancha era de madeira, as tomadas subaquáticas muito bem fotografadas fazem questão de mostrar. Então tudo bem… E o que diabos um Amish está fazendo em Berlim trabalhando como barman num strip club namorando uma garçonete de origem árabe de cabelo azul? Ele se recusa a usar celular, ele só bebe água (de uma enorme caneca em uma só golada enquanto prende a respiração) desenha em um caderninho com lápis e mora num apartamento modesto… com energia elétrica. Em Berlim. Num bairro barra-pesada. Então ok, ele é um pouco mais moderninho que os outros Amish. Um Amish-punk.
Parece que o mote cyberpunk está em voga. Tivemos recentemente “Blade Runner 2049“, depois “Altered Carbon” (com crítica de nosso Gustavo David aqui) e agora esse filme, e o barato do cyberpunk é sempre mostrar um futuro meio tenebroso, em que a sordidez humana chegou ao seu limite através de avanços tecnológicos ou o que o valha. As pessoas são comumente vazias e perdidas em seus mundos rasos ou sujos, e, nesse caso, Mudo acerta em cheio. Todos os personagens são deliberadamente toscos e desagradáveis. A história é recheada de mafiosos comunistas baratos, brutamontes sem cérebro, prostitutas, travestis, dois militares americanos desertores, um deles um torturador cruel, o outro um médico pedófilo com um senso de humor desagradável. Como no Blade Runner original que mostra um futuro onde a feiura humana chegou a um limite insuportável e personagem algum apresenta qualquer tipo de emoção, com exceção do vilão – um andróide enfurecido, perdido na busca por seu lugar no mundo -, o único personagem que parece ter alguma relação com um mínimo de humanidade é o Amish, o forasteiro não corrompido pela tecnologia e pela evolução desalmada.
O filme tenta explorar tal contraste mas acaba se perdendo em um excesso de eventos paralelos desnecessários e personagens dispensáveis. Apesar dos cenários futuristas e das inúmeras panorâmicas 3D de carros voadores e prédios modernosos a referência cyberpunk se encerra aí. A história principal, a do barman Amish-Punk mudo que banca o detetive pra encontrar seu amor inter-religioso de cabelo azul poderia se passar em qualquer momento do tempo. Isso se houvesse alguma justificativa pra um Amish bonzinho saber brigar tão bem a ponto de desarticular toda uma gangue de mafiosos russos sozinho. Nada no filme justifica que este aconteça no futuro ou que o protagonista vivido por Alexander Skarsgård (o Eric Northman de “True Blood”) seja Amish. Ou mudo. Fosse passado em 2018 (tirando-se todo o aparato tecnológico inútil), ou fosse Leo um personal trainer manco talvez a história funcionasse melhor. O futurismo (e seu excesso de cenas de cobertura para nos localizar no tempo) só torna o filme lento e longo (muito lento e muito longo, tentando ser um filme noir-cabeça europeu chato, mas falhando até nisso), e a mudez que dá título ao filme só diz ao que veio no desfecho completamente dispensável do segundo final (sim, o filme tem o que parecem ser clímaxes seguidos).
Não há grandes erros de fotografia ou edição, as atuações estão lá (Paul Rudd faz o vilão americano redneck escroto e funciona como tal), mas o roteiro não convence nem como ficção científica, nem como noir, nem como policial, nem como filme europeu. Tirando-se os efeitos especiais e a mudez do protagonista, o que resta é uma história que perdeu a oportunidade de ter sido um filme de porradaria do Jason Statham, tipo “Carga Explosiva” só que sem a porradaria que poderia tê-lo tornado, ao menos, dinâmico.
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