Crítica: Paradoxo (Paradox)
O talento inspirador de Neil Young parece ter sido o pano de fundo – ou a desculpa – para a realização de Paradoxo, lançado essa sexta-feira na Netflix sem muito alarde. Dirigido e escrito por Daryl Hannah, (a Pris de Blade Runner, a loira de tapa olho em Kill Bill ou a sereia de Splash) o filme se inicia com uma voz em off, ecoando, como nos trailers dos filmes dos anos 50… “Muitas luas atrás, no futuro…”, e anuncia que… ok, então estamos no futuro. E todos se vestem como cowboys. E os cowboys são mineiros. Eles escavam uma encosta para encontrarem fios e antigos aparelhos de celular. E esses cowboys estão comendo e filosofando sobre a comida, ou sobre a vida… ou sobre dar um cagão… Ou sobre fumar uma cerveja ou beber um baseado… E o filme alterna entre planos belíssimos com uma fotografia maravilhosa e diálogos sobre o dia-a-dia num rancho no interior do que parece ser os Estados Unidos… E os personagens se chamam “Happy” e “Weed”, e alguém fala em “Happy Weed”… porque eles são uma dupla… de cowboys-mineiros-de-tecnologia… que sempre sentam pra cagar juntos… E Neil Young é “The Man in the Black Hat”, e um senhor avisa a um mexicano, que se fosse ele, ficaria longe do Man in the Black Hat… Porque o Man in the Black Hat é um perigoso ladrão… De banco… Um banco de sementes… As sementes da vida… E então mais imagens lindíssimas com canções belíssimas de Neil Young no fundo…. No futuro.
E sabe o que mais impressiona no filme? O filme atrapalha! Entendeu? Não?
Ok, vamos começar de novo. Um dia, no sítio do Willie Nelson em Austin – TX, um grupo de renomados artistas fumava um bagulho do tamanho do meu antebraço enquanto Neil Young dedilhava os acordes de uma canção. Depois daquela sequência de risadas intermináveis quando a erva bateu no cérebro e todos voltaram aos 8 anos de idade, alguém disse: “Deviamos fazer um clipe pra essa música”. E alguém respondeu: “Bro! Yeah! Word!”. Deram mais um tapa e outra pessoa disse: “Essa música é tão bonita que merecia um filme.” E o mesmo cara disse “Word, bro! Yeah”. E Daryl Hannah começou a esboçar um roteiro que fala da importância da música. E das mulheres. E como no futuro as mulheres serão importantes, vitais até! Já que elas carregam consigo as sementes da vida! E Neil Young disse “imagina se no futuro uma empresa fosse dona de todas as sementes!”. E Willie Nelson disse “mas a água é a vida”. E um amigo da família disse “É importante olhar para sua comida… não para saber o que ela é, mas pra saber o que ela era…” E Daryl atentamente anotou todos os comentários e os introduziu como diálogos num roteiro que fala sobre água sendo a fonte da vida, e as mulheres serem as semeadoras das sementes da vida, e as sementes estarem em bancos controlados por empresas e que precisam ser roubadas por foras-da-lei-libertários, e muitos, muitos comentários sobre comida rebatidos com citações de Nietzsche sobre a importância da música, e quando Neil Young e sua banda tocam as pessoas saem voando…
Faz mais sentido agora? Nem no filme. Eu sequer sei se foi isso que aconteceu ou se foi assim que o filme nasceu. Mas faria total sentido. E a pergunta nem mesmo é essa: porque o filme nasceu? E porque está na Netflix?
Não que a Netflix não deva transmitir filmes experimentais! Deve! Mas de filme, filme mesmo, deve haver cerca de 20 minutos. Digo, de narrativa, com diálogos aleatórios e sem nenhuma ligação entre si e atuações superficiais. Todo o resto da 1 hora e 13 minutos do filme são planos lentos e contemplativos de uma natureza de tirar o fôlego com uma trilha sonora belíssima e frases de impacto ditas ao acaso. Em algum momento Neil Young e sua banda começam a tocar e o filme se torna um show do grupo onde todos saem voando com o poder mágico da música. E mais diálogos e gente sentada no vaso cagando, e depois eles acendem a fogueira e uma erva e tocam e cantam noite adentro. Eu sei, isso é spoiler mas, na boa, não faz diferença. Mesmo que eu te contasse todo o filme não faria diferença. Não há nenhuma trama na narrativa, nem nada de fato acontece.
O erro do filme foi tentar ser um longa-metragem de ficção (ou ao menos eu acho que o filme tentou ser isso… acho…). Fosse um longo videoclipe ou documentário sobre a música de Neil Young e sua trupe, pontuados com comentários sobre a preservação da natureza e a igualdade entre homens e mulheres, com uma trilha sonora linda e planos de cobertura com cenas de bosques nevados, planícies onde veados correm e lobos uivam, com majestosas montanhas ao fundo, eu teria dado uma nota 4 ou mais. Porque a trilha sonora é linda e tais planos são lindos. Mas quando eu conseguia entrar em transe e viajar naqueles sons belíssimos e naquelas imagens apaixonantes, cortava pra algum diálogo sobre comida ou cocô.
Se o filme fosse um curta-metragem experimental pra ser exibido num festival de arte, provavelmente também teria recebido boas críticas. Se fosse exatamente como é, em preto e branco, exibido em Cannes nos anos 60 poderia ter concorrido com Glauber Rocha. Mas hoje em dia, na Netflix, o experimentalismo pelo experimentalismo parece um pouco fora de seu tempo. Ficou vazio demais, em aberto demais, viajandão demais e se esforçou demais pra ser arte, perdendo a oportunidade de ser filme. Ou de ser um videoclipe. Ou de ser seja lá qual era o objetivo original antes da larica bater e fazer todos pensarem em comida. E cocô.
Vale como lembrete de que não é assim tão difícil nem se necessita de muito para fazer cinema. Alguns atores (nesse caso nem isso, já que são todos músicos – músicos magníficos por sinal!) um ou dois cenários, alguns diálogos, uma câmera na mão (e maconha na cabeça!) para que se tenha um filme exibido em algum lugar. Nomes famosos e trilha sonora + fotografia belíssima também ajudam a abrir portas, mas não deveriam desencorajá-lo a tirar aquele roteiro do papel. Lembre-se, o importante não é saber o que a comida é, e sim o que ela era.
Ou algo do tipo.
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