Crítica: Anon

Há alguns gêneros clássicos que tradicionalmente andam de mãos dadas no cinema. A ficção cientifica e os filmes noir por exemplo. Imaginar um futuro sombrio, distópico, em que os avanços tecnológicos que, no primeiro momento, pareciam convidativos mas acabam por se tornar opressores e destroem aquele mesmo valor humano que tentavam auxiliar, movendo o enredo da história e criando mistérios a serem desvendados. “Blade Runner” talvez tenha sido o exemplo máximo de tal casamento, trazendo para os anos 80 com cara de anos 2000 um clima de filme de 1940 onde robôs são criminosos sob investigação. Em “Matrix”, outro belo exemplo de tal idéia, agora é um software (naquela época ainda não apelidado de “app”) que ameaça a humanidade e precisa ser vencido. Robô e inteligência artificial são o mote para “Ex Machina” (indicado em nosso Garimpo Netflix), um filme que não tenta seguir a estética sombria dos filmes de detetive de outrora, mas que mantem a tônica de mistério e suspense.

Poucos filmes trouxeram para os dias atuais aquela sensação sensual e convidativa dos Humphrey Bogarts e Ingrid Bergmans do passado (estética escura, misteriosa, monocromática e a narrativa lenta) com tanta propriedade quanto Anon, lançamento desta sexta na Netflix. Baseando-se no novo medo do mundo ocidental – o sequestro das liberdades individuais em um mundo em que a tecnologia resolveu de forma final a questão do panopticismo e é capaz de vigiar tudo e todos a todo instante -, Andrew Niccol, veterano em filmes que falam de futuros distópicos (“Gattaca“, “O Show de Truman“, “Simone“) revisita com maestria os mistérios em preto e branco mantendo-se relevante para os dias de hoje. Dando um passo além da obviedade estética (que está, sim, presente no filme em imagens dissaturadas e referências retrô), ele explora a mídia para a qual o filme foi criado – neste caso a Netflix, um canal de TV on demand – e utiliza a lentidão narrativa dos filmes do passado para nos fazer pausar por um instante e ponderar sobre o que está, de fato, acontecendo na tela.

Em Anon, todos os seres humanos possuem um tipo de implante nos olhos (o filme jamais explica como tal tecnologia funciona, graças ao bom deus!) que permite que tudo o que cada um vê, ao longo de toda a vida, seja gravado em um servidor “na nuvem” chamado de “O Éter”. Tais imagens podem ser acessadas pela policia para desvendar crimes. Além disso, tal implante permite que o usuário acesse informações em tempo real, como um “google” dentro de seu campo visual, que traduz ou explica tudo o que a pessoa vê. O filme apesar de curto (1:40 min) traz uma quantidade enorme de informação, como num livro, já que, tendo sido concebido para lançamento direto na Netflix e, tendo o espectador a possibilidade de pausar o filme e ler as informações que aparecem na tela, a história ganha “meta-data“. Ou seja, aparecem comentários adicionais em texto sobre tudo o que Sal Frieland (Clive Owen fazendo um ótimo policial de meia idade, endurecido por eventos que destruíram sua vida) vê em seu “Olho da Mente”.

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O filme traz uma identidade visual bastante simples, mas bem elaborada, alterando o formato da tela toda vez que o ponto de vista muda (tela cheia para o filme em terceira pessoa, Wide Screen para cenas em primeira pessoa, cantos borrados quando outra pessoa olha pelos olhos de um terceiro, informações numéricas do arquivo quando a imagem for uma memória). Tais informações são o bastante para enriquecer a história e traçar raciocínios paralelos ao que motiva as atitudes dos personagens e para ajudar o espectador a entender o que está acontecendo, mas não para nos ajudar a desvendar o mistério. Qual mistério? Uma série de assassinatos cometidos por um hacker que consegue não apenas apagar seus próprios rastros do sistema, mas apagar as memórias de suas vítimas. Como não há nenhum vídeo a ser assistido contando quem é o culpado, os policiais (hoje todos preguiçosos dada a facilidade com que a tecnologia os permite desvendar tais crimes) têm que arregaçar as mangas e investigar de verdade, como no “passado primitivo”. Ao fazer isso, Niccol consegue trazer com precisão a sensação de “antigo” para um filme moderno, ao mesmo tempo em que explora as falhas de nosso pensamento atual que confia demais na tecnologia (e alardear que essa nos emburrece e nos escraviza a cada dia).

Amanda Seyfried in Anon (2018)

Não bastasse, o hacker é “A” hacker, interpretada por Amanda Seyfried, mais inteligente e forte que o homem que a investiga, sempre um passo à frente, sempre no controle, criando a anti-heroína perfeita para os tempos do empoderamento feminino. Anon triunfa ao reler os elementos formadores dos filmes noir, sua estética, seus personagens típicos e ao criar um paralelo com o mundo atual. Não uma corruptela ou um pastiche, mas um reentendimento do que significam tais signos no presente (ou futuro próximo) e como eles afetam a história.

Termino o texto não apenas com aplausos, mas com uma dica. No afã de escrever essa resenha, assisti ao filme pela manhã. Um erro. A claridade e o barulho da rua acordada me estragaram certas sutilezas e delicadezas que o filme traz em sua belíssima fotografia e trilha sonora (ou ausência dela). Portanto, faça-se um favor e assista-o a noite, como ele foi feito para ser saboreado.

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