Crítica: Cara Gente Branca (Dear White People) - 2a Temporada
Eu queria começar esta crítica dizendo que eu sou um homem brasileiro, branco (para os padrões brasileiros, pelo menos), de 35 anos, classe média e muito longe de estar atrelado a qualquer agenda esquerdopata-petista-chata-para-caralho-politicamente-correta ou seja lá qual for a maneira certamente escrota que se encontre para diminuir ou engrandecer qualquer movimento nesse sentido. Meu ponto é, de cara, que, no país onde vivo, eu não sou discriminado pela cor da minha pele, pelo que tenho entre as pernas ou por qualquer outra razão absolutamente biológica e sobre a qual nem eu e nem ninguém tem qualquer controle.
E, mesmo assim, mesmo não me identificando pessoalmente com estas lutas simplesmente por ser absoluta e biologicamente impossível, eu não tenho como achar que Cara Gente Branca é qualquer coisa que não excelente. Deixando de lado por agora a agenda política-racial que obviamente deixou muita gente insatisfeita nos EUA (basta olhar a pontuação no IMDB e os comentários absolutamente tacanhos de quem deu notas ruins à série), a realidade é que ela é um primor técnico nesta 2ª temporada.
Se na primeira tivemos um episódio que se erguia enormemente acima dos demais, dirigido de maneira realmente magistral por Barry Jenkins (diretor do oscarizado e badalado “Moonlight“), enquanto que os demais pecavam na direção e em muitas das atuações, desta vez estes erros foram simplesmente erradicados. A evolução da identidade visual da série, descaradamente inspirada nos ângulos e planos do clássicos dos clássicos do cinema independente negro americano “Faça a Coisa Certa“, veio junto com uma direção de atores muito melhor engendrada, o que permitiu uma maturidade impressionante de nomes um tanto apagados na 1ª temporada, como, principalmente, os protagonistas Samantha White (Logan Browning) e Troy (Brandon P Bell).
Antes de falar da aula de roteiro que esta série nos dá, é importante também deixar bem claro que estamos muito provavelmente diante de uma atriz e um ator que precisam ser observados de perto daqui em diante. Enquanto Antoinette Robertson, na pele de Coco, consegue nesta 2ª temporada uma performance ainda mais inspirada que na 1ª, Marque Richardson dá vida a Reggie Green de forma ainda mais extraordinária. Ele consegue, de forma aparentemente orgânica e sem esforço algum, dar ao seu Reggie todo o espectro da emoção humana com apenas um olhar. Trata-se de um ator com um talento nato que faz com que ele se destaque dentro de uma série povoada quase que inteiramente por bons atores e atuações.
E o roteiro? Bom, o roteiro é o que o pessoal da série chamaria de woke as fuck. Trata-se de um tour de force de Justin Simien, que aposta em uma narrativa não-linear, com vários pontos de vista sobre uma mesma situação. Uma coisa meio Rashomon (e, se vc não sabe o que é Rashomon, eu só não te mando ir para o caralho porque eu prefiro te falar para ir ver urgentemente esse filme), acompanhando a visão de vários dos alunos da fictícia Universidade Winchester, uma dessas faculdades caríssimas da chamada Ivy League (que nada mais é do que um grupo de universidades que se pretendem mais metidas a besta, e caras, do que as demais). Eles são, com a exceção de Gabe (John Patrick Amedori), todos moradores de um alojamento exclusivamente para negros e a protagonista, Samantha, tem um programa de rádio chamado Cara Gente Branca, no qual ela faz monólogos agressivos contra o racismo e, de certa forma, também manipula os estudantes para promover os interesses do grupo e ideologia que representa.
Nesta segunda temporada, além de continuar se valendo dos pontos de vista de cada personagem, Simien vai além, incluindo também outros 3 pontos no tempo (1840, 1930 e 1970) para melhor contar a história da luta racial no campus daquela universidade e brilhantemente amarrar tudo ao final. Winchester é, afinal, apenas um microcosmo – por meio do qual olhamos para nós mesmos – do problema racial que, por mais que alguns por aí digam que não existe no Brasil, é inerente a toda e qualquer sociedade humana. E, nesse microcosmo, a 2ª temporada vai muito além do que se esperava não só no que tange a temática de conflito étnico, mas até mesmo ao incluir um quê de aventura, mistério e teorias da conspiração com sociedades secretas, sempre mantendo o tom de comédia e deixando o espectador num puta dum cliffhanger ao final.
Ainda que, sim, Cara Gente Branca tenha personagens negros que defendam a segregação ou o que as pessoas adoram chamar de “racismo invertido” (é por isso que a série tem sido criticada e não por seus méritos técnicos/artísticos) como a própria Samantha e Reggie, a verdade é que outros personagens e outras linhas narrativas seguem um caminho oposto, com a série realmente dando voz a praticamente todas as vertentes do ativismo negro americano, além de também, em uma cena realmente magistral em seu 8º episódio, exorcizar toda a questão da “culpa branca” que, segundo essa direita conservadora, levaria aquela que se convencionou chamar esquerdinha-caviar a defender políticas de cotas e afins, mostrando praticamente todos os personagens brancos da narrativa sob uma luz favorável (lembrando aqui que, para o americano, o mexicano, mesmo que de pele branca, não é branco, o mesmo valendo para mim).
A verossimilhança dos personagens e dos eventos que se desenrolam nesse planetoide que é Winchester é somente ferida por três manias da produção audiovisual americana que realmente me incomodam. A primeira é a de que todo mundo (todo mundo mesmo) é absolutamente deslumbrante. TODOS os atores e atrizes são lindíssimos. Até o moleque gay-nerd-4-olhos ostenta um abdome trincado enquanto fala de jogar Fallout 4. A segunda é o maldito efeito Dawson’s Creek, em que personagens de 18 a 20 anos fazem citações filosóficas e conhecem tudo sobre o cinema documental da bósnia do pós II Guerra. Essa forçação de barra em muito dos diálogos tira um pouco, em minha opinião, da imersão em Winchester. E a terceira é o narcisismo americano desvairado que parece obrigá-los a só falar sobre si mesmos, com personagens que são altamente engajados socialmente na luta pela igualdade entre as etnias ao mesmo tempo que se enchem dos mais variados tipos de droga, esquecendo da quantidade absurda de latinos e asiáticos fodidos que morrem justamente para manter vivo o vício do mercado americano. Não se percebe MESMO a absoluta hipocrisia disso em obra alguma e em Cara Gente Branca não é diferente, com negros americanos falando do privilégio branco enquanto que eles, enquanto americanos, sequer se dão conta do seu “privilégio” de ser americanos e do quanto isso custa ao resto do mundo.
Cara Gente Branca se tornou uma das minhas favoritas das séries originais Netflix. Consegue, com muito mérito e louvor, misturar comédia com um tema delicadíssimo, entendendo que talvez a comédia seja a única maneira de gerar empatia, a única linguagem capaz de fazer com que questões como essa sejam passadas e absorvidas por pessoas que, como eu, não as sofrem.
Afinal de contas, a condição do negro na sociedade ocidental pode ser epitomizada pela fala de Baldwin, parafraseado maravilhosamente na interpretação de Marque Richardson: “Ser um negro neste país e ser relativamente consciente é ter raiva quase o tempo todo.” O que a série nos mostra, tornando esta máxima palatável para as massas, é que isto é ou deveria ser uma verdade quase que universal e que a palavra negro pode ser trocada por “mulher”, “gay” ou qualquer outro grupo que seja perseguido e ao qual seja negado oportunidades somente por se ser quem é. E não há nada mais vil e nefasto do que se odiar alguém por algo a respeito do qual não se tem o menor controle.
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