Crítica: Perdoai as Nossas Dívidas (Rimetti a noi i nostri debiti)

“Para entrar no sistema, precisamos ter um pouco do sistema em nós”, conclui o professor subversivo (pelo empático Jerzy Stuhr).

O novo filme “original” Netflix (aspas porque entendo original como algo que venha exclusivamente da Netflix e não uma produção bancada pela RAI, Ministério da Cultura Italiano e alguns outros países do continente) vem da Italia e trata de questões urgentes e imediatas do país, bem como da Europa, como um todo. Ao seguirmos os passos do protagonista Guido (sensivelmente por Claudio Santamaria), estaremos de frente para os conflitos de uma sociedade que se vê sufocada pela crise que parece assolar constantemente e insistentemente o mundo Ocidental.

Guido é um homem só, que tenta andar sobre o fino fio (que balança brutalmente) do dia-a-dia. Demitido de seu emprego como almoxarife, e sem ter como assumir seus compromissos diários de sobrevivência, se vê cada vez mais engolido pelas dívidas necessárias para sua subsistência. Principalmente porque deve um empréstimo e está sendo cobrado por violentos agentes, que surgem na calada da noite para espancá-lo como aviso. Ao se ver em um ponto sem saída e sem retorno, ele mesmo vai até a Instituição se oferecendo para trabalhar de graça, de modo que consiga anular o que deve. Caso contrário – e ele é muito claro – nunca conseguirá quitar seu saldo.

Guido e Rina e sem pecados.

Franco (energicamente por Marco Giallini) é um desses cobradores e será o responsável por treinar Guido à sua imagem e semelhança. Ele, porém, diferente de nosso protagonista, já assumiu seu papel e vê em sua ação apenas um trabalho como qualquer outro. Católico praticante, confessa-se usualmente e jamais coloca seu ofício como fonte de pecado. “Destratei uma garçonete”, “peguei uma revista que não era minha”, esses são seus pecados auto-reconhecidos, mas constranger e assediar devedores jamais foi motivo para questionar sua moralidade. Seu pupilo Guido – em extrema oposição – não consegue lidar com esta nova atividade, sofrendo um conflito interno grandioso ao colocar em cheque sua moral, vez que ele cobra e bate em pessoas que estão em situação semelhante à que ele estava.

Antonio Morabito faz uma direção precisa ao trabalhar muito bem cada um de seus personagens, desnudando seus medos e desejos e fazendo um panorama da atual Itália que nos faz questionar o momento ocidental como um todo. “Vou embora daqui, vou morar com meu familiar em Hamburgo”, declara Rina (pela delicada Flonja Kodheli), em demonstração de insatisfação com seu lugar. “Não me sinto em casa aqui”, conclui a crush de Guido. Independente de onde, todos estamos em uma posição que não é o ponto futuro imaginável; todos estamos buscando fugir, viajar e não mais voltar, porque o momento e local em que estamos não representa, de maneira alguma, a satisfação de nossos desejos pessoais; tão somente são expressões de nossos medos mais imediatos: crise econômica, violência, decadência moral.

Os cobradores também se divertem.

Ainda que, em algum momento, Guido pareça ter incorporado o personagem que tomou para si para conseguir arcar com suas dívidas, sua moralidade é mais forte que isso e ele sucumbe. A cobrança indiscriminada, apelando para mentiras e terror psicológico diante dos devedores, faz com que sua consciência seja seu próprio carrasco. “O mais difícil desse trabalho é não se envolver”, bradou Franco, seu tutor. Mas quando fazemos um breve exercício de empatia para com o outro, logo identificamos que somos todos iguais, em uma ou outra instância. E, dessa forma, estamos todos em dívida uns com os outros.

A sombra de cada um.

O grande mérito de Perdoai as Nossas Dívidas é o fato de, como fazemos com as tradicionais bonecas russas, ir tirando compartimento por compartimento de cada um de nós e nos revelando cada vez menores e menores e menores. Até que não nos sobra nada. Não à toa, a grande maioria toda noite fala em silêncio:

“O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Muito embora a segunda parte desta frase seja facilmente esquecida, pois é da natureza humana querer ser o caçador, quando não mais se é a caça.

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