Garimpo Netflix: Ambição
Não muito mais do que dois meses atrás, minha mulher teve seu carro roubado, às 11h20 da manhã, em uma rua extremamente residencial desta cidade caótica, nefasta, ridícula e patética que é o Rio de Janeiro. Arma na cabeça e lá se perdia no horizonte um de seus bens, conseguidos com suor bruto. Ao passar a tarde na Delegacia para realização do Boletim de Ocorrência, saímos de lá com a ficha completa do que acontecera. A motivação definida pelo investigador para declarar o roubo executado fora “ambição”.
Significado de Ambição
(substantivo feminino): Desejo desmedido pelo poder, dinheiro, bens materiais, glórias etc; cobiça.
O Garimpo Netflix de hoje traz três obras (duas inglesas e uma espanhola) cujo tema central envolve diretamente a ambição. Seja no papel de ator, seja no papel de quem sofre os resultados (como foi o nosso caso) de agentes ambiciosos, seguiremos personagens que submergem em um universo todo gerido pelas relações de poder e desejos desmedidos. A linha temporal das três produções é sugestiva: uma escrita há quatro séculos; outra passada há 100 anos; e outra contemporânea. Independente de quando, onde ou como, a existência humana presume, por si só, egoísmo, avidez de lucro e ambição.
– Macbeth: Ambição e Guerra (Macbeth), de 2015, dirigido por Justin Kurzel.
A, na minha opinião, maior e mais visceral obra de William Shakespeare ganha sua mais nova versão para os cinemas. Trata-se de Macbeth: Ambição e Guerra (no original, tão somente Macbeth – até o subtítulo brasileiro já traz nossa palavra-chave), com os maravilhosos Michael Fassbender, Marion Cotillard e Paddy Considine interpretando o trio Macbeth, Lady Macbeth e Banquo.
Justin Kurzel realiza um filme cheio de simbologias cristãs para mergulhar na mente deste ambicioso personagem, que facilmente morde a isca de três bruxas que predizem um futuro glorioso a ele, apesar de uma conclusão nada esperançosa. Atendo-se tão somente à boa profecia, Macbeth usa suas próprias mãos para que as mãos do destino se façam presentes o mais rapidamente possível, concretizando o vislumbre das feiticeiras. No entanto, um resquício de moralidade fará com que suas ações não adormeçam com o tempo, mas se façam constantes, tal qual manchas vermelho-carmesim que não saem na pureza transparente da água.
A orquestra de Kurzel é completa com a cinematografia fantástica de Adam Arkapaw e a trilha sonora de Jed Kurzel. As imagens do filme conseguem manter a altura e força daquelas sugeridas por Shakespeare em suas letras envelhecidas, porém infelizmente atuais.
– Peaky Blinders: Sangue, Apostas e Navalhas (Peaky Blinders), de 2013-presente, criado por Steven Knight.
O poderoso Steven Knight lança para a televisão a série Peaky Blinders: Sangue, Apostas e Navalhas (iniciada em 2013 e ainda em atividade) colocando Tom Shelby (pelo excelente Cillian Murphy) como o chefe de uma gangue formada por seus próprios familiares em uma Inglaterra pós-I Guerra Mundial, em 1919.
Durante as cinco temporadas, vemos a evolução dos Shelby, desde gangsteres locais até a formação mais organizada do crime de modo mafioso, conseguindo colocar em sua mão a polícia e outros grupos de atividades ilegais. Além desse cenário mais amplo, também somos apresentados aos seus conflitos pessoais de Tom, seus medos e sua personalidade reconstruída após ter vivido os terrores da I Grande Guerra. Mais do que isso, ficamos próximos dos outros Shelby, desde aqueles que discordam das atividades ilegais do líder, até aqueles que crescem nesse universo tendo como modelo a ser seguido o frio e calado Tom.
A cada temporada, uma nova estrutura narrativa é formada, mas as relações pessoais, emocionais e psicológicas estão sempre presentes. Alguns personagens vêm e vão (e um deles encarnado pelo indescritível Tom Hardy), mas a essência que Knight impõe desde os primeiros episódios permanece ao longo da série. Certa vez, um professor de Economia que tive disse que o Brasil estava, em termos de desenvolvimento, cem anos atrasado em relação à Europa. Pois bem, esses 100 anos que separam o atual Brasil da Inglaterra descrita em Peaky Blinders nos mostra algo de muito comum: tanto aqui quanto na tela da televisão que exibe a produção britânica, policiais, investigadores, empresários, gangsteres de vários tipos disputam entre si o poder. Ambiciosos que são.
– The Fury of a Patient Man (Tarde para la ira), de 2016, dirigido por Raúl Arévalo.
Da Espanha, no mesmo cenário em que vivemos hoje, Raúl Arévalo dirige um filme introspectivo, sujo e pesado sobre um homem solitário, Jose (energicamente por Antonio de la Torre), que começa a se envolver com uma mulher cujo marido está prestes a sair da prisão. Aceitando as carícias do misterioso desconhecido, Ana (com força por Ruth Díaz) fica na corda-bamba do relacionamento em escombros. Chegando a vislumbrar um futuro sério e sólido com Jose, ela não tem a menor ideia dos reais motivos que o colocaram em seu caminho.
A trama é costurada pela razão que fez com que o marido de Ana fosse preso. Motorista de uma fuga de assaltantes que roubaram uma joalheria, na qual houve vítimas, ele foi pego e condenado. Saído da prisão, ele e sua mulher irão experimentar a ira daquele que sofrera com a ação indiscriminada de seres ambiciosos. Trata-se do estranho Jose, que tem uma ligação íntima com a vítima supracitada. E tal qual uma caixa de Pandora aberta, eles sentirão um outro poderoso sentimento que, assim como a ambição, faz de cada um de nós demasiadamente humanos: vingança.
Leave a Comment