Crítica: Baronesa
“A vida é pesada para se carregar”. Atual e verdadeira, esta frase não foi dita por nenhum youtuber ou descoberta em um story no Instagram. Ela consta, na verdade, em uma das cenas de As três irmãs, de Anton Tchekhov, peça escrita na Rússia de 1901. No entanto, sua atualidade é inegável e ela ficou martelando em mim após assistir a Baronesa, longa dirigido e roteirizado por Juliana Antunes.
Em sua peça, Tchekhov mostra as vidas de Olga, Irina e Macha, as três irmãs do título, presas à mediocridade de uma província da qual desejam partir, obcecadas pelo desejo de ir para uma Moscou idealizada, projeto sempre adiado pela inércia que acaba por corroer suas almas e sonhos. Filme híbrido, esgarçando as fronteiras da classificação documentário/drama, Baronesa nos faz testemunhas das vidas de Andréia e Leid, moradoras de uma favela na periferia de Belo Horizonte. Andréia cria a sua Moscou no desejo de se mudar para uma favela vizinha, a Baronesa do título, lugar no qual a guerra do tráfico ainda não se instalou. Leid se vê presa na espera pelo marido, que cumpre pena em uma penitenciária.
A diretora já começa acertando na focalização do filme. Assim como no bem-feito Corpo Delito, resenhado por mim aqui no MetaFictions, ela desenha uma forma interessante no cinema documental brasileiro: a promoção de uma vocalização por parte dos excluídos. Se no filme de Pedro Rocha nos era permitido um olhar sobre o sistema penal brasileiro na perspectiva dos apenados, Baronesa nos outorga uma visão sobre a favela, o tráfico, a violência e a miséria na perspectiva das mulheres que ali moram, vozes tradicionalmente pouco ouvidas na cinematografia sobre o tema.
Brota-se, então, uma produção feminina na acepção mais verdadeira da palavra. É uma narrativa de excluídos construída pela voz daquelas a quem, socialmente e em todos os estratos, a exclusão sempre foi imposta. Através de uma câmera que cria uma intimidade bastante perceptível e confortável, apoiada na maravilhosa direção de fotografia de Fernanda de Sena e um trabalho de som direto excepcionalmente bem realizado por Marcela Santos, o filme elabora uma sucessão de imagens e diálogos que, embora triviais, naturais e deliciosos em alguns instantes, apontam para questões indigestas da sociedade brasileira, seja pelo viés da macronarrativa da violência e da miséria no país ou, primordialmente e potencializando essa macronarrativa, pelo viés das micronarrativas das vidas das mulheres que sofrem com isso tanto no âmbito sociocultural quanto na interioridade da vida doméstica de quem tem que criar filhos e sustentar uma casa enquanto o marido está preso ou as redes de amizade são desfeitas porque seus membros são assassinados.
Logo, não é uma surpresa que os momentos mais poderosos de Baronesa se deem justamente na exposição das conversas mais banais das moradoras. Temas como masturbação ou que atitude tomar quando se flagra irmãos experimentando atividades sexuais entre si abrem um leque que expõe o quanto a chamada vida privada tem de político e ideológico. Até mesmo a fragilidade mais patente em produções híbridas como essa, que é a sensação de manipulação do objeto documental ao abrir-se espaço para uma invasão dramatúrgica, e que fica visível em certos takes de Baronesa, acaba contribuindo para uma reflexão mais potente do filme, da própria experiência cinematográfica e acerca da discussão sobre se é possível continuar fazendo ou se ainda existe cinema de gênero em mundo líquido, para se usar a acepção bastante precisa de Zygmunt Bauman.
Esse jogo conceitual que Juliana Antunes cria nos 71 minutos de seu filme (duração provocativa também: média ou longa metragem?) é criativamente aumentado por uma inteligente escolha do roteiro. Embora narrativo, Baronesa abre mão de uma narratividade e aposta em elipses. São espaços vazios, tanto nos diálogos, quanto nos desdobramentos dos fatos, que serão preenchidos pela imaginação e entrega do espectador ao que testemunha na tela.
Mas um espaço a produção faz questão de deixar completo. Andreia e Leid personificam o humano desejo em nós de viver, ser feliz e querer vencer a morte. Seja numa favela mineira, num apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, de onde escrevo esta crítica, ou numa aldeia russa no início do século XX. E é a Tchekhov e a sua Três irmãs que peço para descrever em beleza esse desejo irrefreável:
“”Depois de nós, os homens viajarão de balão; as roupas terão mudado de forma; descobrirão, talvez, um sexto sentido e o desenvolverão, mas a vida continuará a mesma, uma vida difícil, plena de mistérios e feliz. Daqui a mil anos o homem suspirará como hoje: “Ah! Como a vida é dura!”. Mas, da mesma maneira que hoje, terá medo e não quererá morrer.”
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