Crítica: A Ganha Pão (The Breadwinner)

Não basta você viver no meio de um deserto inclemente. Não basta você viver em um país devastado por anos de guerra. Não basta você estar sob o domínio de cruéis extremistas religiosos. Não basta você ser pobre. Não basta você ser uma criança cujo pai idoso e sem uma perna foi aprisionado injustamente, você ainda tinha que nascer mulher. Esta é a história de Parvana, filha de uma escritora e de um professor, contada na lindíssima animação A Ganha Pão, lançamento de hoje na Netflix. Parvana poderia ter qualquer outro nome, em qualquer outro lugar e conheceria os mesmos desafios pelo simples fato de ter nascido uma menina num mundo em que, dentre todos os estigmas, dentre todos os preconceitos, dentre todas as dificuldades, o mero fato de você ser mulher torna sua vida mais difícil.

The Breadwinner (2017)

Parvana vive em Kabul, “na fronteira entre dois impérios em guerra, sob a sombra das montanhas do Hindu Kush”, como contava-lhe seu pai, e sob as leis de um Deus que parece ter decidido que mulheres não têm direito algum. Não podem trabalhar, sair às ruas sem cobrir-se por completo, e, ainda que o façam, devem estar sempre acompanhadas de algum parente homem. Não podem sequer ir ao mercado comprar comida para alimentar sua familia. E se sua família não tem nenhum homem adulto que possa ir à rua por ela, então, pela lei de Deus, não há nada que se possa fazer.

The Breadwinner (2017)

Houve um tempo, no entanto, em que Deus não odiava as mulheres, dizem as lendas. Elas contam que Deus, inclusive, teve uma esposa: Asherah. Ela e seu marido eram adorados lado a lado no templo em Jerusalém, seguindo a tradição das religiões antigas em que um casal divino concebia as pessoas da terra. Tais lendas contam que Asherah, como uma Deusa-mãe, ganhou popularidade dentre seus adoradores e, talvez, suas sacerdotisas também o tenham. Poder, dinheiro, influência, tudo isso sempre esteve presente no que diz respeito a religiões. Justiça e verdade, nem tanto.

Sentindo seu poder ameaçado, os sacerdotes do templo a apagaram dos textos sagrados, queimaram sua imagem fora do templo alegando desejarem purificar o culto e impondo a adoração de um Deus único masculino. Tal ordem foi seguida religiosamente, desde então, por todos os descendentes de tais sacerdotes, sejam eles seguidores da Estrela, da Cruz ou da Meia-Lua. Todos eles, sempre, homens. Vários argumentos foram adotados, desde a “defesa de sua castidade” por cavalheiros cristãos europeus, até o conceito meso-oriental de que elas distraem os homens e tiram-nos de seus caminhos, devendo, assim, ficar longe de suas vistas e, portanto, longe de escolas, universidades, e em especial da política, onde, quem sabe, Asherah decida manifestar-se novamente em sua glória divina, concedendo a suas filhas o poder que seus filhos homens tanto gostam de exercer, em geral, levianamente.

Herdeira das leis milenares dos homens, e impotente diante de sua realidade, Parvana decide, então, tornar-se, também, um homem. Com os cabelos cortados e com as vestes corretas, Parvana desfruta de todas as regalias simples de um cidadão livre e começa a planejar como salvar sua família. O longa, indicado ao Oscar 2018 (e concorrendo com nomes pesados demais para que tivesse chance real de levar o prêmio), utiliza uma linguagem poética e, ao mesmo tempo, árida para desenvolver sua narrativa.

É uma animação e, apesar de que Parvana poderia figurar tranquilamente no panteão de princesas da Disney (caso a produtora tivesse culhão de tocar em tais assuntos), não permita-se crer que se trata de um “desenho animado”. Este não é o tipico filme de animação que venderá milhões em merchandising, nem veremos a figura de Parvana nas mochilas cor-de-rosa das meninas das escolas caras do mundo, infelizmente. O filme utiliza a linguagem da animação para, por vezes, mostrar de forma “elegante” imagens que seriam desconcertantes demais de se ver em carne-e-osso, por outras, nos socar naquelas feridas emocionais que carregamos conosco desde crianças e que apenas um “desenho animado” seria capaz de abrir novamente. Ele fala de forma eloquente e crua quando necessita e com delicadeza e beleza ímpar, valendo-se da diferença no traço do “ilustrador” para contar, em paralelo, lendas que, na voz da própria Parvana, servem de alegoria à batalha enfrentada por ela.

Still from "The Breadwinner", screenwriter Anita Doron

Assisti ao filme com um nó na garganta desde os primeiros minutos e com lágrimas incontidas nos últimos. Tudo o que posso fazer, sem mergulhar na tenebrosa trilha dos spoilers, é recomendar veementemente que você o assista. Seja você quem for. Se homem, assista com honestidade e permita-se sentir-se um bosta pelo simples fato de ser um homem. Você precisa disso para crescer e tornar-se um adulto. Se mulher, eu ofereço-lhe tal recomendação como o mais sincero pedido de desculpas pelo que quer que nós, homens, possamos ter-lhe causado.

 

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