Crítica: O Amante Duplo (L'amant double)

O Amante Duplo (L’amant double)

“O corpo é o corpo e além do corpo repercute o abismo”. A frase encontrada no mais belo capítulo de As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha, um dos livros mais  ousados da literatura brasileira, é um daqueles textos fantasmais, que assombram uma pessoa, retornam e tomam. Em mim, ela voltou com força e muito ajudou na reflexão sobre esta obra-prima que estreia nos cinemas brasileiros: O Amante Duplo, do genial diretor francês François Ozon.

Ozon é um daqueles nomes que, mais que cineastas, transformaram-se, com a força de muito talento e inventividade, em verdadeiras grifes cinematográficas. Sua marca se estabelece através de filmes fortes, desafiadores, estética e conceitualmente ousados. Não se sai indiferente a uma projeção de uma obra dele. Com sua mais recente empreitada, o francês reafirma o porquê de ser tão celebrado pela crítica mundial e vai além. O Amante Duplo abre caminhos até então não percorridos pelo realizador.

Buscando alívio para dores abdominais que surgem sem nenhuma causa física, Chloé (Marina Vacht) começa a se consultar com o psicanalista Paul (Jérémie Renier). A atração que se instala entre os dois impede que a terapia continue e os leva a viver juntos. A vida de casados, porém, revela a Chloé que seu marido lhe esconde detalhes e segredos sobre si próprio. Buscando respostas, ela descobre Louis, também psicanalista, com quem também se envolverá. Escrito pelo próprio diretor, o roteiro desafia: Louis é irmão gêmeo de Paul, de quem Chloé nunca ouvira falar. A jovem se arrastará, então, num jogo de ambiguidades no qual nada é o que parece. Nem a realidade.

Os que estão familiarizados com a cinematografia ozoniana sabem que ele é um provocateur. Aqui, o espectador é levado a testemunhar uma experiencia bastante aguda. Ao embarcar em uma trama tão psicológica, a direção foge ao esperado exercício de investir em imagens a la Buñuel e opta por construir um filme extremamente arquitetural. Mais que sonho, as imagens na tela são arquitetura pura, duplas, espelhadas, geométricas e orgânicas ao mesmo tempo. Racionais, mas oníricas também. Ousadia pura, como no plano em que um olho se revela uma vagina, apoiada por uma fotografia impecável de Manu Dacosse, que instiga em imagens na mesma proporção em que o filme o faz em ideias.

Aliás, essa simbiose entre forma e conceito faz de O Amante Duplo um daqueles longas que se abrem a várias teorizações mas que, pela sua qualidade, não permitem que a reflexão teórica se afaste da natureza imagética da arte cinematográfica. O filme se pensa enquanto produto audiovisual (grifo proposital, leitor MetaFictions). Nessa provocação das imagens, o primeiro conceito como qual se brinca é o freudiano UnheimlichI.

Palavrinha bem alemã, povo que se diverte com brincadeiras lexicais, o termo que em português foi traduzido como “estranho” ou “inquietante” se perde quando transposto. Em alemão, ele contém um jogo mais interessante: Heim significa “lar”, mas também remete a “segredo”. Un, prefixo de negação, traz para a palavra um teor de “inquietação causada por algo que deveria ser familiar”. Ou seja, algo que o ser reconhece e , ao mesmo tempo, desconhece como seu. Gosto de como os franceses traduziram Freud. Para eles, UnheimlichI é o “estranho familiar”.

Tal qual gêmeos. Já viram criaturas mais estranhamente familiares que esses duplos biológicos que andam por aí? Um gêmeo é e não é. Individual e coletivo. O filme atenta para esse sentido e o elenco responde de forma magistral.  Jérémie Renier dá conta dos dois irmãos com extrema competência e lembra ao espectador que gêmeos são espelhos e que a imagem nestes é reflexo e oposição ao mesmo tempo.  Por outro lado, Marina Vacht constrói a sua Chloé se deixando levar pela estranheza e pela atração que envolve os gêmeos, desaguando numa performance de uma entrega e vulnerabilidade belíssimas. A cereja do bolo ainda vem na forma de Jacqueline Bisset, uma das maiores divas do cinema francês, em participação luxuosamente poderosa na história.

Ozon também faz desse filme seu trabalho mais erótico. Recuperando a noção cunhada por Georges Bataille, a de que o “erotismo é a afirmação da vida na própria morte”, O Amante Duplo é, longe dos cinquenta tons e pornozinhos light-nutella, erotismo-raiz. Nele, o sexo se revela em cenas fortes, buliçosas, estéticas. Mas também violentas, hostis, incômodas. A própria câmera executa uma coreografia invasiva, como a lembrar que sexo é prazer e também violação. Não é à toa que os franceses, essa gente que sabe o que fazer debaixo dos lençóis, se referem ao ato sexual, entre os vários títulos poéticos e sujos que os humanos dão a ele, como “la petite mort”, a pequena morte. Ah, Ozon, seu safadinho.

Caro leitor Metafictions, vá ver é ser provocado por O Amante Duplo. No fim, o filme deixa um incômodo bom, uma estranheza que a boa arte provoca. Desafia o espectador e expande os limites da arte. E mostra que o bom cinema é feito do que de mais humano há. Até das nossas familiares bizarrices.

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