Crítica: O Vazio de Domingo (La enfermedad del domingo)

Leonard Cohen é um dos mais magníficos cantores e compositores que meus ouvidos tiveram a honra de conhecer. Foi marcado pela peculiaridade poética em suas músicas, que, acompanhadas com sua voz maciamente falada (e não cantada), traziam seu ar soturno e elegante característico. Escolho essa música, a 1a e que dá nome ao álbum acima,  para falar de um filme igualmente soturno e que me conectou à boa produção do falecido gênio, que não poupou talento e arte nem mesmo antes de ir embora, deixando-nos este último álbum com músicas como essa em que ele conclui, inabalável, que está pronto para morrer. “You want it darker, we kill the flame”, ele diz, 19 dias antes de sua própria chama ser apagada.

O reencontro de mãe e filha após décadas de separação, neste caso por abandono maternal, poderia ser retratado embebido de obviedade. Seja pelo apelo emocional embasado na crença de um “elo de sangue” falar mais alto, seja em uma investida na raiva guardada durante tanto tempo e o desenrolar, portanto, de um grande drama de reconciliação. No entanto, Ramón Salazar, diretor e escritor da obra, opta por um caminho diferente. Recusa os dois desenvolvimentos; de maneira brilhante, deixa claro que ser mãe e ser filha é questão de conexão emocional, e de que esta é construída e não determinista. Segue são ao, também, ponderar estouros emocionais de maneira orgânica, bem escolhida e bela, por fim. Anabel (Susi Sánchez), a mãe. Chiara (Bárbara Lennie), a filha. Será que algo as conectará? Se sim, o que?

Anabel contempla o desafio que enfrentará: os fantasmas do passado que pesam suas costas estão agora indisfarçáveis.

Como ponto de partida, as escolhas de plano panorâmico dão conta de nos mostrar a realidade de Anabel: uma mulher de classe alta, vida estável e de valores que orbitam uma rotina luxuosa. Dentro de minutos conseguimos, através puramente de imagens certeiras, ler aquela mulher – e, também, questionar sua vida marcada pela pompa e materialismo. Em contraste, somos apresentados à filha, de maneira igualmente sutil e sem bê-a-bá de roteiro, Chiara, uma mulher simples e que, como ela mesma diz, segue o estilo de uma vida no campo. Sabemos pouco sobre Chiara – mas, ainda assim, a empatia pela misteriosa figura taciturna da mulher é disparadamente maior do que por Anabele, cuja personalidade parece bem destrinchada ao telespectador. A filha aparece, depois de 30 anos, sem explicações e com um único pedido: que a mãe passe 10 dias com ela.

Qual é a história das duas? Quem é Chiara? Quais as intenções dessa viagem de curto período? Tantas perguntas são formadas a partir de um pedido que é singelo, mas partilha um elemento paradoxal de profundidade diante do passado das duas – mesmo que ainda não esclarecido. Mais uma vez, dentro desse “reencontro”, é clara a ausência de um compromisso com clichê descrito inicialmente. Há muito silêncio durante todo o filme, o que é essencial. Afinal, ainda que estranho, o silêncio diante de um hiato de décadas é mais do que compreensível. Silêncio pelo abandono; silêncio pois, na verdade, ambas estão diante de desconhecidas.

Chiara visita a janela em que viu a mãe sair de casa pela última vez. Em seu âmago, a necessidade por uma volta alerta vez ou outra.

Não sabemos as circunstâncias em que o abandono aconteceu e isso é um dos combustíveis para o filme se tornar tão reflexivo. O retrato, que foge de romantizações acerca da figura da mãe – amável, imaculada, presente -, é um grande acerto, e a história compreende abordar muito além da maternidade. Pontua, sutilmente, que a maternidade é uma escolha e que parir nem sempre significa escolher ser mãe. Através de signos, imergimo-nos na experiência sensorial da solidão, guiados por uma direção fotográfica impecável com enquadramentos dignos de tornarem-se quadros emoldurados. Não se deixe enganar pelo ritmo vagaroso do filme, que de maneira nenhuma é um problema, pois, apesar de sê-lo, requer grande atenção diante do verdadeiro adorno verbal – sua real narrativa é pelas imagens, gestos, luz, cortes. Quando presente, o vernáculo mostra-se sazonal, como frutas maduras prontas para serem saboreadas.

As transições de cena para cena são feitas por um clique de máquina antiga, que remete à lembranças sendo dedilhadas e à toda nostalgia ameaçadora entre as duas. Cronologicamente, também há uma espécie de reconstituição de momentos da criação de um filho. Uma visita ao carrossel, a preocupação de perder o filho na multidão; ressaca e a alusão à adolescência tardia; por fim, uma primordial cena de conclusão que não merece ser descrita e sim apreciada por olhos sensíveis. Tal cena deságua em recomeços e fins, laços antigos e recosturados, questionando sacrifícios maternais e, em especial, um conceito que ronda a cabeça de seres humanos atemporalmente: o que é libertação?

“I’m ready, my lord…”

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