Crítica: Secret City - 1a Temporada

Faça um teste. Pergunte à próxima pessoa que você vir qual é a capital da Austrália. É bem provável que a resposta da maior parte seja “sai pra lá, seu maluco do caralho”, mas aqueles que se derem ao trabalho de responder provavelmente dirão Sydney. E talvez você concorde, já que Sydney, afinal, é praticamente a única cidade da Austrália que todo mundo conhece (sem contar aquelas obscuras que dão nome a pratos do Outback), além de ser a mais populosa e economicamente importante do país. Tá errado, contudo. A capital da Austrália é Camberra (Canberra em inglês e pronunciado quase que como “cãibra” com sotaque gringo), uma cidade de 450 mil habitantes para a qual os próprios australianos cagam e em cujo cenário político se desenvolve a trama deste Secret City, mais nova série da Netflix anunciada como original, mas que na verdade só é distribuída por eles, tendo sido realmente produzida pelo canal à cabo showcase da Austrália.

Temos aqui uma trama que mistura uma australiana ativista pró-Tibete ateando fogo a si mesma em alguma praça na China, uma repórter bisbilhoteira, uma série de assassinatos na outrora calma e gélida Camberra, um Ministro da Defesa pró-China, uma Procuradora-Geral pró-EUA, um Primeiro-Ministro no meio do conflito entre estes dois, uma funcionária de alto escalão de uma agência de inteligência australiana transgênero e, por fim, um uso um tanto irreal demais de chips de celular.

Os 6 episódios de 45-50 minutos seguem a vida política doméstica e internacional da Austrália, um país que se encontra no meio de um eterno cabo de guerra entre China e Estados Unidos, seja por causa de sua localização geográfica estratégica (e extensa), seja porque são os dois países para onde sua produção de minério é escoada. E é pegando isso de pano de fundo, dentro da realidade de uma cidade pequena e pacata – mas na qual há a tal “cidade secreta” onde o destino dos australianos é decidido – que a coisa toda se desenrola, valendo Camberra como uma analogia bem cabível do quão insidioso e vil é o jogo político e do quanto – seja lá, seja cá – nós, supostamente os detentores do poder, sequer fazemos ideia das negociatas e ardis pérfidos assinados em nosso nome.

Ainda que a série toda cheire fortemente a “House of Cards”, desde seus planos de câmera até mesmo aos próprios diálogos, o roteiro acertadamente trilha um caminho de mera inspiração ao focar muito mais nos aspectos investigativos de todas as questões apresentadas do que propriamente à politicagem (e não vou me alongar em quais questões são essas por medo de spoilers). O acerto começa na escolha da protagonista: Harriet Dunkley (Anna Torv, uma espécie de Cate Blanchett genérica), uma brilhante repórter política-investigativa do maior e mais influente jornal do país. Isto, apesar de um clichê de obras deste gênero thriller político-criminal, funciona e ajuda o espectador a se situar, em especial quando estamos aqui diante de um sistema político completamente diferente do nosso e que pode ser meio confuso de início.

Realizada de forma competente em basicamente todos os aspectos, é no roteiro e em suas reviravoltas que a série tem seu ponto forte. Mesmo com aquela quantidade maluca de elementos que apresentei lá no começo (e ainda tem muitos outros), tudo é muitíssimo bem amarrado, com resoluções que fazem sentido dentro do contexto apresentado pela obra, sempre de modo a nos lembrar que realmente não há limites para o nível de promiscuidade presente em todos os estratos da sociedade, em especial na classe política, que nada mais é do que a representação extrapolada do que é um povo.

Outro ponto que vale ser destacado aqui é a maneira como o personagem de Kim (Damon Herriman), o tal transgênero a que me referi no começo, é retratado. Trata-se somente de mais um personagem, vivendo os dramas e problemas inerentes à sua profissão, sem que a série desvie de sua proposta original somente para tratar de um assunto que em nada tem a ver com a narrativa principal. O fato de Kim ter nascido homem, posteriormente ter se identificado como mulher e se divorciado de Harriet (com quem realmente devia ser um porre ser casado), é mencionado muito en pasant, em apenas um ou dois diálogos, com as suas ações enquanto funcionária de uma agência de inteligência tomando uma importância dentro do roteiro que afasta qualquer drama que ela tenha ou não vivido pelo evidente trauma a que teve de se submeter por se identificar com outro gênero. Num momento em que muitos filmes e séries se desviam de maneira forçada e maniqueísta de sua proposta original para então panfletar a favor ou contra determinado assunto por motivo nenhum que não para que os próprios realizadores possam se gabar de terem levantado tal bandeira (a 1a temporada de “O Justiceiro” e a 2a de “Luke Cage” são dois dos mais recentes exemplos disso na própria Netflix), e assim prejudicando a obra, este compromisso do roteiro com nada que não consigo mesmo é de ser destacado e louvado.

Após distribuir ao mundo a boa “Glitch” (cuja 2a temporada está resenhada aqui e que foi indicada em nosso Garimpo Netflix: Austrália) também neste mesmo esquema de dizer que é original dela, a Netflix mais uma vez traz ao mundo uma amostra da excelente teledramaturgia australiana com uma obra realizada com competência e que trata de um tema atemporal. Secret City conta com boas atuações, a direção segura de Emma Freeman e um roteiro com um foco invejável, tendo ganhado prêmios na TV australiana e já garantido a estreia de uma segunda temporada no final deste ano.

Confira a crítica da 2ª Temporada de Secret City – Under the Eagle aqui.

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