Crítica: Alguma Coisa Assim
Vivemos tempos líquidos. É assim que, em seu já nascido clássico, Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman apresenta os nossos dias. Avessos à solidez que marcou os períodos anteriores, vivemos uma época de fluidez, na qual nada é permanente, totalizante ou totalmente perceptível e capaz de ser abarcado por nomes ou definições. Alguma Coisa Assim, o mais novo longa de Esmir Filho (do estonteante “Os Famosos e os Duendes da Morte”) e Mariana Bastos é uma poética celebração desses dias.
A própria gênese do filme já é fluida. Sua base é o curta-metragem de mesmo nome, assinado por Esmir em 2006. Nele, dois adolescentes, Caio e Mari (André Antunes e Caroline Abras), se lançavam na noite paulistana enquanto descobriam juntos muito de si. O longa recupera as cenas do curta e, numa espécie de “Boyhood” à brasileira (aliás os pontos de contato com a cinematografia de Richard Linklater não param aqui), insere mais dois momentos na vida da dupla: o casamento de Caio em 20013, que tem sua primeira experiência homossexual na tal noite de 2006, e o reencontro da dupla em Berlim de 2016. É uma pungente reflexão sobre o que é crescer e se tornar adulto nos nossos dias, apartados, para o bem e para o mal, das certezas que a geração dos nossos pais tinha.
A escolha dos protagonistas precisa ser destacada de cara. Antunes e Abras formam uma dupla maravilhosa na tela. Suas definições de química foram redefinidas depois do filme. Vivo falando aqui da tal “interpretação de olho”, aqueles momentos em que os atores conseguem passar tudo apenas pelo olhar. Que olhos, leitor MetaFictions, que olhos esses dois têm em cena. Ajudados pelo bom roteiro, eles formam um jogo de espelhamento cênico, refletidos e opostos. Assim, a doçura e ilusória fragilidade de Caio encontram o contraponto perfeito na agudeza e ilusória fortaleza de Mari. Esse espelhamento continua, gerado pelos protagonistas, em outros elementos do filme, como Berlim/São Paulo, adolescência/fase adulta, amor/amizade, paternidade/maternidade.
As escolhas estéticas de Alguma Coisa Assim também merecem parabéns. A fotografia espetacular de Juan Sarmiento G. e Marcelo Trota cria uma riqueza imagética linda de se ver. Ampliando a narrativa “interior” do filme e o tom escolhido pelos diretores, ela consegue, através da imagem, mergulhar nas personagens e, ao mesmo tempo, destacar os espaços enquanto reflexos (tome-lhe espelhos!) de seus mundos interiores. O resultado é muito bom e foge totalmente de algumas vacuidades estéticas que se multiplicam no cinema contemporâneo.
Da mesma forma, a edição contribui muito para o projeto do longa. Assinada por Caroline Leone, a montagem se mostra muito orgânica e ágil, mesclando os 3 tempos narrativos sem deixar no espectador a sensação de que assiste a um videoclipe, mas que cada momento foi único e também inserido no todo. Esse trabalho poetiza, por exemplo, as mudanças físicas dos atores ao longo desses dez anos de filmagem e dá um relevo maior às acertadíssimas escolhas dos diretores.
Longe de macular o bom desempenho do longa, dois elementos soam destoantes. A trilha sonora incomoda em vários momentos e nem sempre de uma maneira que poderia favorecer à narrativa. Algumas poucas cenas do, no geral, muito bom roteiro, também poderiam ter sido deixadas de lado em nome de maior fluência.
Mas, no geral, Alguma Coisa Assim é um grande acerto. Contemporâneo no mais tocante sentido da palavra, é uma discussão sobre laços humanos numa época em que todos os referenciais palpáveis se esvaneceram. É bonito, é forte e capta o espírito de uma geração. Geração que poderia falar pela boca de uma personagem de Caio Fernando Abreu quando diz:
“Eu acho que a gente só pode dizer que nós não temos culpa. Que nenhum de nós tem culpa de nada. A única coisa que nós estamos tentando fazer é encontrar o jeito de dar um passo além do fim do mundo.”
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