Crítica: Jogos Sagrados (Sacred Games)
Apesar de a Índia ser o país que mais produz filmes ao ano (chegando, segundo algumas fontes, ao dobro de Hollywood – que figura na 3ª posição, perdendo ainda para a Nigéria), o que lhe dá o carinhoso apelido de Bollywood, a entrada desses títulos no Brasil sempre foi um tanto tímida. Porém, a salvadora dos cinéfilos, Netflix, constantemente tem nos permitido ficar em um contato mais próximo com essas produções. Em pouco tempo, vi alguns, resenhamos todos aqui no site (Amor Por Metro Quadrado, Contando os Segundos e Quatro Histórias de Desejo) e eu pude desfrutar de diversos lados dessa cinematografia: de filmes com aspecto novelesco a dramas contundentes extremamente maduros, a Índia é um campo a ser muito explorado por aquele que gosta verdadeiramente de Cinema. E, mais uma vez, fazendo-se presente nesse amplo universo mundial, a Netflix lança sua nova série original. Vinda de lá, Jogos Sagrados é a bola da vez.
Um policial honesto, o sikh Sartaj Singh (em atuação sólida de Saif Ali Khan), vive em meio a uma corporação corrupta. Por algum motivo, ele é escolhido como contato de um famoso gângster local, que deseja contar sua história através do telefone até que Sartaj seja capaz de descobrir sua identidade. A trama inteira não é essa, mas apenas o começo. Ainda no primeiro episódio, o policial identifica o vilão, que lança um aviso enigmático: “Mumbai será toda destruída” dentro de poucos dias. Fosse um chefe do crime comum, nosso protagonista poderia se dar por satisfeito, vez que já havia pego o criminoso. No entanto, o antagonista, que aqui surge como figura principal da história, tem um complexo de deus. E ainda que não permaneça vivo a partir dali, sua presença se fará cada vez mais aparente.
Trata-se de Ganesh Gaitonde, interpretado em três momentos da vida por dois atores: na infância, pelo inesquecível e excelente ator Sunny Pawar (que nos encantou com seu gritos desesperados de “Guddu, Guddu!”, em “Lion: Uma Jornada Para Casa“), quando guardava uma inocência e um brilho no olhar; na fase adulta e, depois, mais madura por Nawazuddin Siddiqui (com uma atuação tão marcante que parecem dois atores diferentes). Seu olhar de perdido, à procura de algo que ainda não sabe o que, e, posteriormente, sua ausência de vida no mesmo olhar, marcas de um homem que encontrou sofrimento por onde passou, é um dos momentos mais louváveis do trabalho de Siddiqui. Dessa forma, a narrativa da série vai e vem, entre passado antigo, passado próximo e presente. A vida de Gaitonde vai sendo costurada em seus três momentos, enquanto Sartaj vai em busca da resolução da provável aniquilação de Mumbai. Essa narrativa retalhada também é ligada aos momentos históricos da Índia, quando Jogos Sagrados se permite sair um pouco do seu conto policial e, constantemente, desferir críticas ao país.
Toda a trama que envolve Sartaj e Gaitonde se revela algo muito maior. Há a corporação corrupta por trás, estrelas de Bollywood envolvidas e o auto-endeusamento de Ganesh enquanto vai se construindo como o maior gangster local. Tudo isso leva Sartaj a ser afastado do caso, mas seu desejo por solucionar o misterioso caso o faz investigar em particular toda a teia de incógnitas que a história de Ganesh Gaitonde sugere. A trama é rocambolesca e, por vezes, o espectador mais desavisado pode se considerar meio perdido. Não é o tipo de série na qual acontece algo extremamente interessante a cada bloco, mas de alguma forma a complexidade das relações apresentadas na narrativa vão despertando uma curiosidade maior acerca de seus principais personagens, muito embora alguns outros pareçam estar ali apenas como preenchimento deste conto.
Um dos maiores acertos desta série, porém, é o fato de conseguir agregar os diferentes e ricos elementos de uma sociedade gigante (com seus 1,2 bilhões de habitantes), que, apesar da pobreza, é uma das economias que mais cresce no mundo, ocupa o 2º lugar no ranking de MENOR criminalidade do planeta e abriga diferentes línguas oficiais e diversas religiões. Através da investigação do sikh Sartaj, conhecemos os dissabores religiosos de Gaitonde, que o leva a inventar uma nova religião, da qual ele é seu próprio deus – “Ele não está acima de mim, mas eu estou acima dEle”, demarca seu território o poderoso gangster. “Você está passando por tudo isso, porque não respeita Deus”, retruca uma de suas empregadas. Uma espécie de representação micro de sua terra natal, ele convive dentro de si próprio com conflitos religiosos, com desejos de algo que quer ser, com afirmações daquilo que não é, com práticas condenáveis, mas que são meras reproduções do que se percebe no todo – “se, àquela época, o primeiro-ministro roubava o povo, porque eu também não poderia fazê-lo?”, indaga Gaitonde, quando do início de suas atividades ilegais.
Ainda que suas sequências não sejam de extrema originalidade, ainda que, por vezes, a narrativa pareça se perder em meio a tantos “vai-e-vens”, o simples fato de acompanharmos uma história investigativa de policiais, gângsteres, corrupção e religiosidade do ponto de vista de uma sociedade que se entende extremamente plural, que pode até ser considerada, em muitos aspectos (como os supracitados no parágrafo anterior), contraditória, já vale a experiência. Mas, para além do contato cultural, os conflitos internos de ambos os personagens, Sartaj e Gaitonde, são suficientes para entendermos que os dissabores e sofrimentos pessoais são mais do que íntimos a cada um de nós; na verdade, independente de qualquer diferença ou característica que possamos ter em particular, é isso que nos torna iguais.
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