Crítica: Nos Vemos no Paraíso (Au revoir là-haut)

Estamos hoje vivendo uma verdadeira revolução na indústria do Cinema (e da televisão também, mas isso não importa para fins deste argumento) com o advento do streaming. Não há efetivamente nada mais cômodo do que ficar com o bozó sentadinho em seu familiar e confortabilíssimo sofá, de cuequinha (ou equivalente), bebendo sua lata de refrigerante que custou R$ 1,39 no mercado, comendo sua pipoquinha de microondas de R$ 0,99 e, principalmente, não tendo que se preocupar com adolescentes desgraçados e barulhentos, e tudo isto pagando uma mensalidade menor do que uma meia-entrada de filme em 3D daquelas salas que só faltam ter cadeiras massageadoras. É muito mais cômodo, mais prático, mais confortável e bem mais barato.

Mas, de tempos em tempos, chega um filme que se mostra quase obrigatório de ser assistido em uma sala de cinema. Além dos grandes blockbusters que quase que necessitam de toda a porrada visual e sonora que uma sala de cinema pode proporcionar para que funcionem, só algumas poucas obras recentes me vêm a mente: “Dunkirk” e “Mãe!“. E agora, a estes dois títulos, adiciono mais este Nos Vemos no Paraíso.

Trata-se de uma obra que lida, de forma espetacular na acepção da palavra, com dois dos mais fortes e definidores laços que podem envolver dois seres humanos: a amizade e a relação paternal. E o faz valendo-se de uma história fabulosa, também na acepção da palavra, sobre Edouard (o argentino Nahuel Pérez Biscayart), um rapaz rico que vai para a 1ª Guerra Mundial muito para espezinhar seu pai, Marcel (o magistral Niels Arestrup), onde então conhece um pé-rapado chamado Albert (Albert Dupontel) e daí floresce uma amizade que, como toda amizade deve ser, elevará ambos depois que acontecimentos terríveis estreitam ainda mais o laço já sabidamente fortíssimo de irmãos em armas e que têm como uma de suas consequências fazer com que Edouard passe a usar máscaras.

É um filme que consegue, com o mesmo esmero técnico e a mesma paixão artística, retratar a violência desmedida da Grande Guerra em seus primeiros 15/20 minutos, a beleza clássica da Paris dos anos 20 no resto e permeia tudo isso com um caráter lúdico que não deveria ter lugar numa história que é pesadíssima, lidando com a carnificina da guerra, mutilações, alienação parental, peitinhos, dependência em drogas e até mesmo um assassinato, mas tem e funciona perfeitamente.

A película presta, em cada um dos seus 117 minutos de exibição, uma homenagem belíssima ao Cinema ao juntar todos estes elementos em um roteiro extraordinariamente escrito dentro de uma estrutura simples, com um vilão mau igual ao pica-pau (o maravilhoso Laurent Lafitte e seu sorriso de filho da puta com bigode) e protagonistas de uma moral um tanto torta, mas de bom coração. Há mais do que um mero quê de homenagem. Toda a obra evoca Méliès, “Hugo” do Scorsese e “A Vida é Bela” de Benigni, com um protagonista lembrando muito uma mistura de Edward Mãos de Tesoura com Amélie Poulain e um desenho de produção que remete à Nouvelle Vague. Nos tempos de hoje, é refrescante ver um filme que é nostálgico sem tentar ser e que não se apoia exclusivamente neste sentimento para funcionar.

E, para além das escolhas de roteiro, muito disto se deve aos lindíssimos desenho de produção e figurino, em especial no que se refere às tais máscaras que Edouard usa, e uma trilha sonora e incidental verdadeiramente primorosa. Toda a produção da obra é um espetáculo por si só, fazendo um filme que custou 10 milhões de euros (um orçamento bem grande para a realidade do Cinema francês) parecer ter custado 5 vezes mais, e em áreas tão díspares quanto o figurino, maquiagem e os efeitos especiais que sutilmente salpicam toda a obra.

Realmente não foi à toa que Nos Vemos no Paraíso ganhou 5 Césars (o Oscar do Cinema francês), os de figurino e desenho de produção, dois para Dupontel (que é mais conhecido no Brasil por sua atuação visceral no perturbador “Irreversível” do polêmico Gaspar Noé) por roteiro adaptado e direção e, finalmente, o de cinematografia para Vincent Mathias. E aqui cabe um parênteses para esse senhor. Trata-se de um diretor de fotografia que se mostra virtuoso em seus planos malucos e no uso inteligente e narrativo da iluminação, e que achou em Dupontel uma alma gêmea, dando vida aos planos sequências desvairados idealizados pelo diretor e por ele executados.

Também ajudados pela segura direção de Dupontel, todo o elenco brilha, com destaque para os bigodes do próprio Dupontel e de Lafitte, e, especialmente, para a atuação sóbria e contida de Niels Arestrup como o pai de Edouard, um homem duro e austero, mas que sofre profundamente em seu âmago a culpa do arrependimento por não ter sido para seu filho o pai que poderia e gostaria de ter sido.

Nos Vemos no Paraíso, apesar de ter alguns probleminhas de ritmo (e fica aqui um salve para a Tia do Ritmo, Marco Medeiros), é um deleite para os sentidos, com uma produção primorosa no aspecto técnico e apaixonada no artístico, contando com um elenco fantástico, um roteiro extraordinário em sua simplicidade e uma dicotomia entre a sublime fantasia e a crua realidade que é de uma poesia e um lirismo poucas vezes alcançados no Cinema.

Infelizmente, ninguém aqui voa ou solta raio laser pelos olhos, então ele não deve ter a distribuição que merece. Mas, caso você tenha se interessado, você deve a obra e ao próprio Cinema ir assisti-lo na tela grande.

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