Garimpo Netflix: Colapso da Civilização

Desde o início da civilização, os grupos sociais atravessam momentos dos mais odiosos e, ainda que cambaleiem, dançando no fio da navalha, parecem vencer os momentos mais delicados, conseguindo manter as convenções que permitem a vida em grupo minimamente harmônica. Apesar do tempo de sua existência e dos pesados episódios pelos quais já passou, a civilização ainda esboça uma fragilidade preocupante, sugerindo um colapso a qualquer tempo, como se um copo completamente cheio até a borda dependesse de uma tímida gota a transbordar seu conteúdo.

Muito embora haja um sem-número de filmes que exploram um lado mais avassalador desse contexto, como em cenários pós-apocalípticos, em que a sociedade se despe de todas as suas máscaras e maquiagens, notamos que o colapso pode começar em espaços menores, no dia-a-dia de cada um, em uma relação conflituosa de um ser para com outro. A sociedade, portanto, não colapsa tão somente no seu todo, mas começa a se destruir quando seus pequenos membros não mais sustentam suas normas.

Garimpo Netflix dessa semana traz três títulos que identificam conflitos, de espaços micros a macros, como um anúncio constante de que a auto-destruição da sociedade parece ser um elemento inerente a ela própria.


Um Passado Sombrio (Every Secret Thing), de 2014, dirigido por Amy Berg

https://www.youtube.com/watch?v=jBposnKtOXc

Neste thriller de mistério e drama, estaremos de frente para duas crianças com baixa auto-estima e sentimentos de rejeição constantes. Ronnie (Dakota Fanning) e Alice (Danielle Macdonald) são duas “colegas” que não se encaixam no universo em que vivem, seja por não terem padrões socialmente aceitos de beleza ou por não terem um padrão lógico de construção familiar. Não sabendo canalizar suas frustrações, por serem ainda muito crianças, elas se envolvem em um rapto de um bebê e por isso são encarceradas. Anos mais tarde, conseguem a liberdade e tentam recomeçar suas vidas.

No entanto, tão logo experimentam mais uma vez o sabor de serem livres, um novo desaparecimento de uma criança, com as mesmas características daquele outro, vai colocar as mesmas Ronnie e Alice (agora jovens) em evidência, enquanto a investigadora de outrora, Nancy Porter (Elizabeth Banks) faz de tudo para recuperar o bebê com vida.

Inveja, rejeição, frustração, ódio e amor – alguns dos principais sentimentos de cada indivíduo – serão colocados em destaque, de modo a destruir, pouco a pouco, as relações pessoais de cada um dos envolvidos nesse arranjo de desilusão. Se as relações não se sustentam, tampouco os indivíduos. E se eles não se mantém, a sociedade começa a ruir.

Conflitos e Reencontros (Little Accidents), de 2014, dirigido por Sara Colangelo

Em uma pequena cidade mineira, administradores e trabalhadores das minas vivem juntos. A harmonia daquele local, porém, é desestruturada quando um acidente soterra vários mineiros, deixando apenas um sobrevivente, com algumas sequelas. A partir desse evento, três famílias deverão se manter firmes para vencer o abalo gerado: marido e mulher (Elizabeth Banks), não só tem que conviver com o desaparecimento de seu filho JT (por Travis Tope), ocorrido no bosque local, como terão que passar pela investigação legal de negligência acerca do acidente; o menino Owen Briggs (em belíssima atuação de Jacob Lofland), que perdera seu pai, uma das vítimas soterradas, e tem ligação direta com o desaparecimento de JT; e o sobrevivente, Amos Jenkins (em delicada interpretação de Boyd Holbrook), que tenta se adaptar às suas novas limitações, enquanto é pressionado pelo sindicato e demais empregados da região, acerca do que testemunhará no processo.

Nesse conto, os interesses de cada um vão se colocando acima das necessidades reais de cada qual, promovendo afeto e desafeto entre novos conhecidos e antigos companheiros. Um drama sutil que vai costurando a vida desses três núcleos de personagens, cujos destinos vão tomando caminhos diferentes por conta de “pequenos acidentes”.

A negligência de um, o segredo de outro e a verdade de mais um é o que pode cimentar uma estrutura de antemão condenada ou, pelo contrário, fazê-la ser levada abaixo, não sobrando muito além de poeira e pó.

Maus (The Maus), de 2017, dirigido por  Yayo Herrero

Antes de abordar o filme em si, devo chamar atenção do espectador. É possível que, se assistir a esta obra por nossa indicação, vossa excelência retorne para um massacre verbal em nossas mídias. Portanto, mais uma vez, chamo a atenção do espectador. Este filme não é simples. Não traz respostas. Não é auto-explicativo. Pelo contrário. Muito pelo contrário. É uma produção mais autoral, cujo entendimento é tão mais expressivo quanto mais se conhecer a história prévia sobre a qual o longa trata – como se parte de suas definições estivessem para além da diegese (dimensão ficcional da narrativa). Aqui, os personagens funcionam muito mais como metáforas e ilustrações de algo muito maior do que como os indivíduos que conhecemos na narração promovida por Herrero.

O alemão Alex (August Wittgenstein) e a muçulmana bósnia Selma (Alma Terzic) são um casal que está caminhando em uma floresta da Bósnia e Herzegovina após o carro ter quebrado em pleno caminho. Apesar de estar em sua terra natal, Selma não se sente nada confortável, visto que está de volta, após muito tempo, ao local onde seus familiares foram vítimas do histórico Massacre de Srebrenica promovido pelas forças sérvias. Alex, por um momento, tenta buscar ajuda, deixando-a sozinha no local, quando fica à sós com duas pessoas da região, cujos olhares demonstram intenções nada louváveis.

Alex e Selma farão de tudo, desde tentar invocar o seu guardião espiritual, para quem tanto reza, até lutar com as próprias mãos para conseguir escapar de uma nova revisitação a um passado pouco distante e inegavelmente presente.

Sempre que uma sociedade se julgou superior à outra, o resultado não foi diferente de um extermínio.

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