Garimpo Netflix: Ligados pela Origem
Um dos elementos mais importantes constituidores do nosso ser, seja em seu estado mais subjetivo quanto no mais objetivo possível, se deve, em grande medida, às nossas origens. Aquele que tenta negá-la é malfadado em sua tarefa. As origens são a base do entendimento mais amplo, bem como do mais específico. Remontam, para os que defendem o evolucionismo, a toda uma série incansável de adaptações ou algo que o valha. Ou, em termos mais pessoais, trazem a história de uma linha cronológica, que costura um ser no outro.
O presente Garimpo tem como fio condutor esta noção, porém em seus padrões mais individuais. Tratam-se de histórias cujos personagens demonstram fidelidade à sua origem, mesmo que, em certos casos, impedidos de conhecê-la. Demarca o quanto a identificação com a comunidade (em especial a mais valiosa e primária de cada ser: a família) na qual se insere é, talvez, o seu elemento mais concreto de autorreconhecimento. Três histórias com bases diferenciadas, de países distantes entre si (Índia, Reino Unido e Argentina), permeando classes e etnias completamente distintas, falarão com peso sobre a importância daqueles que são ligados em definitivo pelas suas origens.
– Ajji, de 2017, dirigido por Devashish Makhija
https://youtu.be/Wxow_2bUNZA
Não sou especialista em Cinema Indiano. Vi poucos títulos. Porém, ao que me parece (a não ser que tenha sido azar dos meus encontros com esta cinematografia), há um enfadonho didatismo em suas obras. Um quê de atropelo novelesco em suas tramas e desenvolvimentos. Se essas breves visitas me fizeram criar uma espécie de ressalva a priori com filmes do país, Ajji, da maneira mais direta e enfática possível, resolveu o embate para mim. Trata-se, aqui, de uma pérola, de um verdadeiro garimpo de ouro. Um filme bruto, sensível e sério, em seu sentido mais estrito. Uma obra que não poupa o espectador e que segue determinado em seu conto visceral e necessário.
Ajji (deslumbrante por Sushama Deshpande), uma senhora de casta inferior, vive de forma extremamente humilde em seu casebre, junto com demais familiares. Cada qual procurando uma forma de se sustentar, para manter os mais amados, dia após dia. Mas seu objetivo de vida passa a mudar depois que ela encontra sua pequena neta Manda (delicadamente por Sharvani Suryavanshi) estuprada e largada em um lixão próximo. Percebendo que a polícia não ajudará no caso, pois o estuprador é de uma casta superior e filho de um político influente, Ajji resolve, por si só, honrar (até onde isso é possível) sua neta, a segunda geração que carrega a continuidade do que ela própria é.
Devashish Makhija comanda suas cenas de forma extremamente madura e com vigor, perturbando constantemente o espectador, esmagado pelo tornado de emoções concentrado na simpática avó, sedenta por uma forma de justiça. Ainda que esta se apresente deveras primitiva.
– Laranjas e Sol (Oranges and Sunshine), de 2010, dirigido por Jim Loach
Imagine que suas memórias de infância, por qualquer motivo que seja, foram apagadas. Nenhuma lembrança nebulosa restante. Mas não devido a um universo distópico no qual as mentes humanas são controladas. Na verdade, devido a um universo demasiado real no qual seres humanos tomam em suas mãos outros seres humanos, sem qualquer prerrogativa, e os enviam para um continente, onde iniciarão uma nova vida. Crianças, aos milhares, para trabalharem e sofrerem toda sorte de abusos por parte de seus “tutores”. Esse trauma, porém, a memória faz um esforço insistente para jamais esquecer. Trata-se da história, de fato real, sobre crianças britânicas separadas arbitrariamente de suas famílias e enviadas à Austrália.
No corpo de Margaret (sempre bem por Emily Watson), uma assistente social britânica, a narrativa vai se desenvolvendo quando ela toma conhecimento sobre uma acusação de que anos atrás houve tráfico de crianças britânicas para a Austrália, impulsionado e acobertado pelo próprio governo inglês. Juntando dois irmãos que estiveram entre os alarmantes números dessa migração forçada, Margaret vai descobrindo uma rede de crianças que, agora adultos, buscam um retorno às suas origens. Vislumbram a possibilidade de reencontrar aqueles de quem foram tirados, aqueles cujas características carregam em cada parte de si mesmos. Para isso, porém, precisam revisitar memórias jamais perdidas de um passado traumático e desgostoso.
Dirigido por Jim Loach, Laranjas e Sol conta com a delicadeza e realismo que impactam através da simplicidade narrativa. Um elemento que vem da origem deste diretor: filho do adorável e brilhante Ken Loach.
– O Décimo Homem (El rey del Once), de 2016, dirigido por Daniel Burman
Da Argentina vem um título que “destoa” do drama forte presente nas duas indicações anteriores. Trata-se do simples e sutil O Décimo Homem, que, da mesma forma que os supracitados, apresenta a importância das origens na constituição de uma pessoa, porém com um flerte com a comédia. Ariel (em atuação bastante natural de Alan Sabbagh) é um judeu afastado de sua família e cidade natal há anos. Quando retorna a Buenos Aires, volta a ter contato com um estilo de vida diferenciado sobre o qual nunca entendeu muito bem. Seu pai, Usher (em breve aparição, mas com maestria por Usher Barilka), mantém uma forma de comunidade de auto-ajuda entre judeus na Argentina, muitas vezes colocando os interesses pessoais em segundo plano pelo bem do grupo, como um todo.
Apesar de nunca ter concordado com esse padrão, Ariel, em seu suposto breve retorno, se vê no meio daquele modelo. Fazendo de tudo para encontrar seu pai o quanto antes, somente consegue contato por telefone, quando Usher tem a oportunidade de pedir que seu filho resolva alguns assuntos enquanto não está presente na comunidade onde atua. A contragosto, Ariel não decepciona o pai, fazendo de tudo um pouco, à medida em que começa a entender o conceito de família que o velho Usher tem. Cada ato seu vai fazendo com que ele revisite suas origens, ao passo que o sentimento de pertencimento vai ressurgindo e se fortalecendo dentro de si próprio.
Sem grandes alardes, cenas deslumbrantes ou tramas rocambolescas, Daniel Burman opta pelo simples para contar uma tocante história que se entende simples: somos o que somos quando estamos em casa, com aqueles que consideramos nossos.
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