Crítica: (Des)encanto (Disenchantment)

Houve um tempo em que o estúdio Hanna-Barbera reinava soberano no universo das animações para TV. De fato, havia a Disney no cinema, com seus longas produzidos com esmero técnico ímpar, e a Hanna-Barbera com suas séries televisivas com temas variados e estilo simples de animação, reaproveitando quadros, piadas e ideias, focando em temas comuns às famílias americanas. Em seu auge, o estúdio lançou aquele que durante 30 anos foi a animação mais bem-sucedida em todo o mundo: “Os Flintstones”. O desenho contava a história de uma família típica – papai, mamãe e filhinha, com seu animalzinho de estimação em uma casa de subúrbio – e era ambientada em uma idade da pedra fictícia. A série durou 6 temporadas, teve mais de 160 episódios e se tornou uma referência na cultura pop.

Seguindo no rastro criado pela divertida família de Bedrock, o estúdio lançou, em 1962, “Os Jetsons” – a história de uma família típica – papai, mamãe, filhinha adolescente, filhinho nerdzinho, animal de estimação – ambientada num futuro fictício onde as pessoas moram em prédios nas nuvens e dirigem carros voadores. A série se tornou, também, uma referência de cultura pop, apesar de ter durado apenas 3 temporadas. Ainda intrigados com o tamanho sucesso que famílias fictícias faziam nas tardes de domingo das famílias reais, em 1972, a Hanna-Barbera resolveu apostar novamente na formula e lançou “Os Muzzarelas” (The Roman Holliday no original), série com a mesma premissa – papai, mamãe, filhinho, filhinha e animal de estimação – passada na roma antiga. Dessa vez, no entanto, a série não repetiu o sucesso de seus predecessores e durou apenas uma temporada de 13 episódios (que apenas eu vim a assistir e curtir, nas longínquas tardes dos anos 80 em algum programa sem nome na extinta TV Manchete).

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Lembra dos Muzzarelas? Nem você nem ninguém…

O reinado de William Hanna e Joseph Barbera foi absoluto até que um camarada chamado Matt Groening apareceu e revolucionou os desenhos animados ocidentais (os asiáticos continuaram a fazer o que já faziam muito-bem-obrigado). Groening, convenhamos, pegou a fórmula da Hanna-Barbera – papai, mamãe, filhinho, filhinha, animal de estimação – e repaginou para o final dos anos 80, contando com humor ácido a vida de uma família suburbana americana. Lançado em 1989, “Os Simpsons” são hoje a série animada de maior sucesso e influência de todos os tempos (com “Os Flintstones” em segundo lugar, mordendo-lhes os calcanhares!) e continua até hoje lançando temporadas novas ano após ano. “Os Simpsons” abriram as portas dos desenhos animados para o humor adulto e inteligente, e permitiu que outros títulos como “South Park” e qualquer outra coisa na Cartoon Network viessem a existir.

Após 10 anos de sucesso, Groening resolveu beber da fonte mágica da HB novamente e lançou “Futurama” – uma série… passada no futuro, com carros voadores e etc. Dessa vez não há uma família e sim um grupo de amigos se envolvendo em todo o tipo de aventura espacial, mas o humor ácido e as referências da atualidade pop que são a marca registrada dos Simpsons estavam lá. A série durou 7 temporadas e foi, a sua própria maneira, um grande sucesso. E, nessa sexta-feira, a Netflix embarca em mais uma tentativa do rapaz em “homenagear” seus ídolos, William e Joseph. (Des)encanto (Disenchantment no original) não se passa na roma antiga, mas sim em uma idade média fictícia. Um mundo que parece uma mistura de referências de contos de fada, RPG e séries violentas de cavaleiros, vikings e afins que inundaram as TVs a cabo na última década. No centro da história, claro, papai – o Rei Zog -, mamãe – a falecida rainha Dagmar, substituída pela madrasta Oona – e a filhinha – a Princesa Bean, bem como um grupo de amigos se envolvendo em todo o tipo de aventura medieval contando com o elfo Elfo e o demônio Luci.

A série se desenvolve ao redor de Bean, uma princesa cheia de vontades, de saco cheio da vida de menina rica controlada pelo pai, que pensa apenas em festa, bebida e sexo – ou seja, uma adolescente normal. A moça, prometida em um casamento político, resolve enfrentar os planos reais e evitar tal destino quando encontra Luci, seu demônio pessoal que, obviamente só a aconselha a fazer merda, e Elfo um… elfo… que vem de Elfland, um lugar que parece a terra dos Smurfs onde só há felicidade, doces e cada elfo tem um nome que descreve sua personalidade. Elfo, mais um duende de Papai Noel que um elfo loiro, alto, de olhos azuis e ombros largos no estilo preferido por Tolkien e todos os jogadores de D&D, é uma ovelha negra em sua própria terra perfeita e a abandona em busca de tristeza, amargura e os outros sabores da vida.

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A série traz todas as referências que você pode esperar, do conselheiro careca duvidoso a um rei e rainha que também são irmãos à la “Game of Thrones“, salas de tortura e cavaleiros no estilo Monty Python e um mundo que, de fato, tem um fim (-do-mundo, com borda e tudo… alguém aí já leu Terry Pratchett?). E funciona bastante bem, em especial se você é desses que têm “Ash nazg durbatulûk…” tatuado ao redor do braço. Claro que há limitações à formula Simpsons/Groening, de crítica social e aos hábitos da atualidade, e a série foca em piadas sobre os exageros das séries ultra-violentas atuais, enredos tortos de contos-de-fada e outros estereótipos nerds RPGísticos (com uma divertida releitura de um famoso conto dos Irmãos Grimm com referências a Bates Motel e Hannibal). Tal limitação é balanceada com uma linguagem levemente mais adulta que Simpsons e Futurama (refiro-me a palavrões e insinuações sexuais), liberdade oferecida pela exibição em um serviço de streaming versus TV aberta ou a cabo. E com apenas 10 episódios de 29 minutos cada (e season finale com plot twist digno de “Final Fantasy”) fica difícil resistir.

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