Crítica: Ghoul - Trama Demoníaca (Ghoul)
Quando o assunto é terror, temos aqui batido repetidamente numa tecla: em primeira instância, há os fillers e há aqueles títulos que trazem uma nova forma de se fazer e ver este gênero. Há algum tempo, Ryan Fields trouxe suas boas impressões acerca do novo Hereditário e, alguns meses atrás, eu falei de forma semelhante sobre Annabelle 2 (aproveito aqui para fazer justiça: a nota 3,5 que dei à época torna-se 4 ou 4,5 agora – é um filmaço!). Em ambas as obras, estamos de frente para inovações e para uma forma de se fazer terror que propõe algo diferenciado. Já não podemos dizer o mesmo sobre o lançamento da semana nos cinemas Slender Man, que apela para os recursos habituais em filmes desse tipo, segundo nosso mesmo Ryan. No entanto, tem algum tempo que apresentei em um Garimpo Netflix a boa produção de Babak Anvari, Sob a Sombra, na qual o diretor se vale de uma estrutura de terror para desferir críticas políticas à sua sociedade específica, apresentando um outro formato para este gênero. E é por este mesmo caminho que a nova minissérie Netflix envereda: Ghoul – Trama Demoníaca.
Com três capítulos de cerca de 40 minutos cada (totalizando basicamente um filme de duas horas), a minissérie indiana traz um momento futuro próximo, no qual a Índia passa por um governo de características totalitárias, vigiando seus cidadãos e prendendo, torturando e executando aqueles considerados subversivos. Tal qual “1984” de George Orwell, há a indicação daqueles que podem ser “recondicionados” ao pensamento do Estado. Dessa forma, como todo Estado totalitário que a História já conheceu, boa parte da sociedade passa a pensar como seu líder, sendo sufocada em suas expressões mais íntimas e pessoais.
No meio desse turbilhão social, acompanhamos a personagem Nida Rahim (em boa atuação de Radhika Apte), que faz parte de um dos grupos desse sistema de defesa cruel e extremamente violento. Ela é um dos soldados que trabalha em uma base de prisioneiros considerados terroristas, onde são brutalmente torturados e exterminados, para que novas informações possam garantir a maior segurança do Estado indiano. Nida é responsável pela denúncia de seu próprio pai, um professor que não anda conforme as decisões arbitrárias desse governo fechado, ensinando aos alunos assuntos fora do currículo oficial. O pensamento do Estado está tão concreto em Nida que ela abdica de sua relação familiar mais imediata e pura em nome do país e do sistema nos quais acredita.
Até aqui – que é basicamente o primeiro episódio dos três – você e eu nos perguntamos: “beleza, e o terror com isso tudo?”. Como falei na introdução, tal qual Babak Anvari, Patrick Graham se utiliza dos elementos do gênero para executar sua crítica política. Somos apresentados, junto com Nida, à esta base de extração de informações onde ela começará a trabalhar: alguns prisioneiros em celas e um encarcerado principal de quem desejam tirar todo o tipo de segredos. Ali Saeed (em assustadora atuação de Mahesh Balraj) é o alvo que, embora sofra todo tipo de punição física para quebrá-lo mental e emocionalmente, jamais fala qualquer coisa. Sua conduta, inclusive, durante todo o processo de tortura – que conta com muitos recursos – é inexpressiva, fazendo com que os militares fiquem cada vez mais sem ação. É quando o gênero principal começa a se fazer presente: Ali Saeed não parece ser algo humano, mas uma forma de possessão demoníaca que vai atacando um por um dentro do local. Se antes os defensores do Estado estavam atacando indivíduos pelo bem do país, agora eles terão que tentar sobreviver às investidas desse demônio que toma forma humana, a qual a cultura árabe dá o nome de ghûl.
A associação da crítica política com os elementos dignos de um terror assustador vão aprofundando a história narrada por Graham, que não se perde em sua narrativa. Em um primeiro momento poderíamos desconfiar que o diretor se perderia entre uma obra de cunho político-social e outra de terror. Mas não é o que ocorre. Nem ele faz um terror pelo terror, nem se utiliza de uma figuração para desferir críticas a modelos e pensamentos políticos. O conto consegue associar os dois elementos, fazendo deles pontos principais daquilo que está sendo exposto aos espectador. Entre as interpretações mais imediatas, vemos as divergências de pensamentos e a intolerância entre estes como um demônio encarnado que faz com que um conterrâneo destrua o próximo e, consequentemente, a si mesmo. Nada distante do que vemos hoje em dia, em que extremismos políticos fazem pessoas se envolverem em pesadas discussões, enfraquecendo até mesmo relações antes duradouras, pelo simples fato de não concordarem com a mesma visão. Mais do que isso, vemos opostos agindo da mesma maneira, tornando-se aquilo que mais criticam – mas o fazem tão cegamente que são consumidos pelo seu próprio discurso. Ódio sendo combatido com ódio. Intolerância sendo combatida com intolerância. Esse é o retrato do terror que vivemos atualmente. Esse é o terror que Ghoul – Trama Demoníaca ilustra, através de uma figura sobrenatural e completamente assustadora.
Apesar de esse ser o maior acerto da série, em determinado momento esta profundidade é um pouco deixada de lado em nome das tensas cenas de perseguição e terror. Porém, o cenário criado consegue consolidar toda a tensão, susto e medo – elementos dignos do gênero – na tão aludida crítica político-social. O demônio ghoul vai tomando a forma da pessoa que ele ataca, fazendo tanto os demais personagens quanto o próprio espectador se confundir, tentando descobrir a todo momento quem é quem. Como em um jogo de espiões e detetives, qualquer um pode ser o aliado ou o próprio algoz. E, no duro, não é exatamente isso que vemos em regimes como o exposto neste filme? No duro, não é exatamente isso que estamos a ver em nosso dia a dia? Como com uma mordida repentina de um ghoul travestido, mudamos nossas concepções e convicções, tornando-nos prisioneiros de nós mesmos e perseguidores dos outros.
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