Crítica: O Animal Cordial
O dono do restaurante, a garçonete que é sua fiel escudeira, o chef transgênero-paraíba que é a alma da cozinha do estabelecimento, o aposentado meio desgostoso da vida que só faz beber e o casal-classe-média-alta-paulistano-pau-no-cu. Um destes – talvez todos – é o animal cordial do título e é justamente nessa jornada de descoberta, tanto pelo espectador quanto pelo próprio personagem, que a diretora e roteirista Gabriela Amaral faz sua brilhante estreia em longas.
Produzido por aquele que talvez seja o produtor brasileiro de maior sucesso mundialmente, Rodrigo Teixeira (responsável por filmes de fama internacional e oscarizados como “Me Chame Pelo Seu Nome” e “A Bruxa”), O Animal Cordial é, em uma primeira camada, um microcosmo das relações de poder no Brasil e, em uma segunda, uma poderosíssima alegoria sobre o ser humano e sua eterna busca por propósito e a elação absoluta e contagiante de quem o encontra, ainda que desavisadamente e onde menos se espera.
Enclausurando toda a ação em não mais que 3 ou 4 ambientes dentro do fictício restaurante La Barca, Amaral cria um thriller que mantém o espectador tenso o tempo todo ao colocar membros de vários estratos da sociedade em embate (ou na total falta dele) o tempo todo. É o casal pau no cu em uma relação corriqueira de submissão mulher ao homem, é este mesmo casal, em especial a mulher submissa, destratando de forma “cordial” quem os serve, é a garçonete submissa ao patrão, o patrão que se remói todo por dento por ter que aceitar uma bicha de cabelo longo como principal responsável pelo sucesso de seu estabelecimento e este mesmo viado, como ele mesmo se refere a si, tendo que aceitar trabalhar naquelas condições.
É neste ambiente que toda a história se desenrola. Ao final de uma noite aparentemente comum no restaurante, o pessoal da cozinha controlada pelo trans Djair (Irandhir Santos, sempre ótimo) faz aquela cara de cu própria do sujeito que está prestes a ir embora quando chega um cliente minutos antes do restaurante fechar – e, falando como quem já trabalhou em cozinha, isso é realmente um saco. Djair manda seus comandados embora e vai tirar uma satisfação com o dono, Inácio (Murilo Benício, premiado como melhor ator no último Festival do Rio), enquanto Iara, a garçonete gostosa-feia vivida muito bem por Luciana Paes em um physique du role perfeito ao papel, fica do lado do patrão e os 3 comensais assistem constrangidos. O restaurante é então invadido por dois assaltantes e é a partir daqui que toda a construção de todos esses personagens nos brinda com um filme precioso.
A beleza do roteiro de Gabriela é se reconhecer como entretenimento e focar muito mais na construção de seus fascinantes personagens do que em qualquer pretensão de comentário social que a obra efetivamente tem. A crítica ao status quo está ali, mas de forma sutil, sem assoberbar ou dominar o filme, apenas como uma força motriz para a motivação dos personagens e para a deliciosamente monstruosa transformação sofrida por eles. É ao acompanhar as ações dantescas deles e seu desabrochar – em cenas carregadas de tensão, violência e um grotesco erotismo em determinado momento – que a obra chega a momentos de real brilhantismo, alçando-a a posição de um dos melhores – quiçá o melhor – filmes nacionais do ano.
Ajudando Gabriela a imprimir sua marca autoral estão a trilha sonora por vezes primorosa, por vezes exagerada de Rafael Cavalcanti e a cinematografia bem acertada de Barbara Alvarez. É nesse trinômio formado pelos três que a obra se apoia e apresenta um resultado final que vai muito além de satisfazer, muito embora a mixagem e a edição de som derrapem perceptivelmente em várias oportunidades. A fotografia, por sua vez, escolhe consagrar as convenções do gênero com closes reveladores, efetiva e competentemente invadindo os personagens com a câmera em quase todas as suas ações.
Para além disso, Gabriela Amaral mostra também ser uma apaixonada pelo Cinema e, principalmente, por aquele tipo que se presta a retratar, sem julgamentos, aquilo que a sociedade convencionou chamar de “doenças mentais” ou “psicopatias”. É possível notar aqui tributos, que passam longe da cópia, ao excelente “A Secretária” (uma pérola da cinematografia indie) e “Assassinos por Natureza”, além da fascinação pelo gore própria do nosso Zé do Caixão. Há uma tentativa também de se homenagear Tarantino nos diálogos que tentam se apresentar como crus ou realistas, mas que nem sempre funcionam como deveriam, soando às vezes como artificiais demais.
No geral Gabriela Amaral faz uma excelente estreia em longa-metragens com O Animal Cordial, um filme que é, antes de tudo, uma ode de amor aos seus personagens e à sangrenta jornada de descobrimento de sua própria natureza.
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