Crítica: O Autor (El Autor)

Até alguns anos atrás, quando me faziam aquela pergunta simplista de “o que você quer da vida?”, minha resposta era escrever. Cresci sendo motivada a fazer das palavras meu conforto e pensei: “por que não fazê-las meu ganha-pão também?” Diversos foram os motivos que me fizeram desistir de uma carreira que o teclado – ou ainda o bom e velho papel e caneta – fossem meus instrumentos de trabalho, mas posso destacar como grande divisor de águas a sensação de que precisaria incitar inspiração para escrever como quem clica em um botão. A banalidade que isso causaria a uma coisa que me era, e ainda é, bastante íntima e um tanto irreplicável me afligia.

De certa forma, vejo em Álvaro (Javier Gutiérrez) meu grande temor saindo do plano das possibilidades. Determinado a escrever um livro, o homem insiste há anos na carreira de escritor e busca inspiração enquanto tudo a sua volta parece prosperar e sua vida, em contraste, ser uma absoluta merda. A começar por sua esposa, Amanda (María León) uma escritora de sucesso que tem reconhecimento à nível nacional. É inegável que Álvaro vive à sombra da figura da mulher, tanto em termos profissionais quanto ainda vitais. O filme inicia com Álvaro atrasado e tal detalhe funciona como um signo em paralelo à sua vida, que parece estagnada em variados aspectos.

De quebra, Amanda ainda é uma gata…

O diretor Manuel Martín Cuenca escolhe meticulosamente que signos agregar ao longa e, ainda na análise deles, definitivamente um que merece destaque é o constante calor em alguns personagens, desagradavelmente suados durante o desenvolver da narrativa. A escolha parece uma forma literal de mostrar caminhos árduos, conflitos desgastantes e que derretem tal qual os corpos daquelas figuras no verão de Sevilha. Gotículas escorrendo pela testa de Álvaro vêm de encontro à afirmação do fracasso do advogado enquanto marido, escritor e, como que num efeito dominó, pessoa.

Após uma maré de azar especialmente miserável, Álvaro recebe um esculacho do professor do curso que faz de escrita que parece fazê-lo mudar sua perspectiva; uma espécie de epifania obscura decai sobre o homem, advindas das palavras do sermão: “Para se inspirar, viva!”. Fazendo uso de um dos neologismos do Dicionário das Tristezas Obscuras (uma das coisas mais encantadoras que a internet já me apresentou), Álvaro sente sonder na pele; ele se dá conta da complexidade da vida daqueles ao seu redor e que todos têm uma história. Tomado pela obsessão de escrever, ele copia o cotidiano de seus vizinhos e, num ato frio e calculista, começa a manipulá-los para que suas vidas se tornem material literário.

Solidão, obsessão e frieza: uma espécie de fórmula do perigo…

Cego pela fixação egótica de produzir uma obra literária, e assim provar para o mundo que ele é talentoso e digno de admiração, Álvaro não poupa ninguém e dispensa qualquer traço de empatia em nome de sua mesquinhez. Nada é demais desde que mantenha afastada a impotente tela branca de seu computador, dando a antes inalcançável inspiração que o cara almejou por tantos anos. De início o personagem parece entregue à arte; no entanto, ele ultrapassa a linha entre dedicação completa e ambição desenfreada sem pestanejar.

O filme conta com bons diálogos, em especial vindos do professor, que inquestionavelmente é o grande sábio do núcleo – ainda que um arrogante irremediável. “Sempre haverá aqueles que pensam que você é um merda”, ele dispara, justificando depois que o artista tem que aprender a fazer sua arte pelo gosto; ele celebra a entrega, não o talento. Dentro dessa linha o filme carrega essa mensagem na cena em que a síndica (Adelfa Calvo) canta com o corpo, voz e entranhas, compromissada não com o público e sim consigo.

Brindemos à entrega, visceral e honesta, e não à conquista de um grande público, formado por indivíduos que, no final do dia, não dividem a cama ou encaram o espelho com você – e você, seja esse um fardo ou privilégio, sim.

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