Crítica: Quem Tem Carma Nunca Alcança (Brij Mohan Amar Rahe!)

A Netflix parece ter se instalado de vez em terras indianas. Todo mês há alguma novidade aparecendo vinda deste que é um dos maiores produtores cinematográficos do mundo já há muito tempo, ainda que a esmagadora maioria de seus filmes coloridos, alegres e cheios de dança não cheguem ao ocidente. Depois de 3 longas – o excelente “Quatro Histórias de Desejo” e os regulares “Contando os Segundos” e “Amor Por Metro Quadrado” – e uma série – “Jogos Sagrados” – a Netflix solidifica sua produção indiana com esta grata surpresa que é Quem Tem Carma Nunca Alcança.

A primeira impressão já surpreende, uma vez que parece se tratar de uma comédia de humor negro – um subgênero da comédia que raramente é visto na Índia – na qual Brij Mohan (cheio de nuances por Arjun Mathur) é um cara daqueles que tão aí na correria. Dono de uma loja de lingerie numa espécie de Saara ou 25 de Março no estado do Punjab, ele está o tempo todo correndo atrás, seja para conseguir manter seu negócio funcionando, seja para atender aos caprichos de sua esposa megera Sweety (Nidhi Singh) ou para manter sua amante jovem e fogosa Simmi (a lindíssima Sheetal Thakur).

Para tanto, ele, em uma realidade bem parecida com a nossa, passa a maior parte do tempo rolando dívida sobre dívida, ainda que leve uma vida sem qualquer luxo que não um carro velho e uma casa meio depauperada. Para além das dívidas, Brij também mente o tempo todo para se evadir de seus credores, para conseguir continuar comendo sua amante e para tentar, sem sucesso, que sua esposa pare de lhe encher o saco.

Eventualmente ele chega a um ponto crítico depois de dar calote no agiota gente boa/homicida Raghu (o hilário Sunny Hinduja). É partir daqui que uma comédia de humor negro leve e mais ou menos começa a entrar numa espiral pesadíssima que nos leva a chafurdar em um inferno pessoal que se torna mais denso e agoniante a cada novo minuto de exibição, culminando em um final realmente inesperado e devastador, e fazendo um filme meia boca em seu início ir bem além do que prometera.

E isto tudo ao mesmo tempo em que a obra se torna uma alegoria poderosíssima para a total impotência do homem comum diante das instituições, da burocracia massacrante e da corrupção brutal, sistemática e impessoal de um sistema que, lá como aqui, parece servir somente para oprimir aqueles como nós que assinamos o Pacto Social sem nem saber que o fizemos ou sequer do que se trata e enriquecer os que estão em posições de poder. É realmente de se bater palma o trabalho de Nikhil Bhat como roteirista aqui (ainda que deixe a desejar um pouco como diretor) ao competentemente –  e tal qual a transformação pela qual passa seu protagonista – começar um filme de uma maneira e terminá-lo de outra bem diferente.

Há, ainda, um subtexto relacionado ao carma que acompanha toda a obra, com uma narrativa que é impiedosa com seu protagonista como poucas obras têm a coragem de ser, levando o espectador a entender que Brij merece tudo aquilo que está passando com ele, mesmo quando, ao mesmo tempo, tenhamos todos uma empatia inescapável com o rapaz, vítima que é, assim como todos nós, do acaso, das circunstâncias, do meio e das escolhas ruins que fez por toda a sua vida.

Ainda que a obra sofra bastante com alguns problemas de ritmo e force um pouco em sua sanha de arregaçar a vida de seu personagem principal, ela mais do que compensa em seu comentário social por vezes mascarado em um tom cômico e, principalmente, pela força de seu roteiro, que nos leva em uma jornada da qual o cinemão convencional geralmente tem medo, em especial a dançarina e animadíssima Bollywood, fazendo com que esta obra se assemelhe mais a algo feito na Escandinávia ou no Reino Unido.

E, antes que vocês perguntem, não, não há qualquer dancinha aqui e as musiquinhas engraçadinhas são ouvidas apenas nos toques de celular de personagens engajados em atividades tenebrosas.

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