Crítica: A Catedral do Mar (La catedral del mar)
Seja no audiovisual, seja na literatura, há uma corrente de extrema popularidade que se presta a retratar a mais absoluta desgraça, miséria e sofrimento humanos. Alguns o fazem de uma forma que parece natural e outros já preferem enveredar por caminhos mais fáceis, apelativos e gratuitos, como as muitas novelas mexicanas que inundavam a televisão aberta nacional na década de 90.
A Catedral do Mar se encontra em uma espécie de meio do caminho entre estas duas vertentes. É absolutamente orgânico e natural o sofrimento evidente que toda e qualquer mulher, em especial as de classe baixa, sofria em qualquer lugar do planeta no século 14 e é nele que boa parte da obra se concentra. Ao mesmo tempo, contudo, há um amontoado de situações forçadas para justificar a dor e o desespero de parte dos personagens que incomoda pela sua gratuidade, uma vez que fica claro que o roteiro tinha muitas outras opções menos inverossímeis a serem seguidas.
Antes de falar do que trata a trama principal da série, é importante deixar claro que ela começa no início do século 14, uma época eminentemente feudalista e marcada pelas relações oriundas deste sistema. Entender que ela se passa em um recorte histórico em que as relações de poder eram muito mais violentamente marcadas do que jamais haviam sido ou voltariam a ser é fundamental, uma vez que é justamente por meio dessas relações de poder que toda a dor e desgraça será passada ao espectador.
Isto porque começamos a narrativa com a história de Bernat (Daniel Grao) e Francesca (Natalia de Molina), história esta que é impiedosamente desgraçada por força do suserano de Bernat, que comete atos de crueldade inimagináveis para com o casal, eventualmente separando-os e forçando Bernat a fugir de suas terras para tentar ser um homem totalmente livre na cidade de Barcelona. A partir daqui, tomando como fio condutor a construção da tal catedral do mar – a belíssima Igreja de Santa Maria del Mar, construída não por nobres, mas por cidadãos devotos -, Bernat criará seu filho Arnau (Aitor Luna), que, após dois episódios, passa a ser o protagonista. E aí, como que herdando a vocação dos pais a comer o pão que o diabo amassou, acompanhamos a vida de Arnau enquanto ele e todos a sua volta sofrem inclementemente na mão de nobres, da peste bubônica, da inquisição e da vida em geral.
Baseada no best-seller homônimo do espanhol Ildefonso Falcones, a emissora espanhola Antena 3, onde a série estreou oficialmente para milhões de espanhóis em maio deste ano, claramente não poupou investimentos aqui. Os cenários são grandiosos, a fotografia exuberante (apesar de pecar na iluminação em alguns momentos), os efeitos especiais são bem utilizados e uma parte considerável das cenas é passada em locações, o que aumenta o custo de produção e garante maior credibilidade e realismo a qualquer trama.
O mesmo, porém, não pode ser dito das roteiro e das atuações. Enquanto o primeiro cria algumas situações de um maniqueísmo realmente constrangedor em toda a construção do sofrimento dos personagens (há um garoto que MORRE porque se molhou um pouco com a água do mar enquanto outras duas crianças que estavam com ele nem um resfriado pegaram) e trata-nos como nenéns boa parte do tempo com explicações tatibitati, o segundo é, por vezes, novelístico, algo que parece ainda mais fora de tom quando esta é uma produção que parece intentar de verdade trazer as situações e personagens para o real. Há contudo, exceções à regra, como no próprio protagonista e, em especial, no assustador e inclemente inquisidor geral Nicolau (Sergio Peris-Mencheta).
A produção, ainda que seja realmente grandiosa e competentemente realizada, derrapa em circunstâncias que são um tanto inexplicáveis dentro do seu próprio propósito de buscar o realismo. Por exemplo, apesar de todas as pessoas que não são nobres estarem sempre maltrapilhas e imundas, todas elas têm os dentes branquinhos como o do Roberto Firmino e o protagonista sempre ostenta cabelos hidratadíssimos e bem aparados. Isto para não falar das mulheres (todas lindíssimas) que, embora pobres e sujas, estão sempre com seus cabelos também lindos e sorrisos que devem ter custado muito caro, ou dos atores de 25 a 30 anos interpretando personagens de 15 a 50 sem que sequer haja um esforço de maquiagem para rejuvenescê-los ou envelhecê-los. Este tipo de descuido em uma produção desse porte não só beira o inaceitável como também é incompreensível considerando todo o cuidado que se teve com o restante.
O realismo, portanto, é a palavra chave aqui. Ele é buscado a todo momento e alcançado em boa parte do tempo, mas parece ser deixado de lado em momentos cruciais do roteiro para o avançar da história, da direção para tornar tudo mais realista e na própria reconstituição de época que, se é excelente em sua maior parte, peca em coisas pequenas e inexplicavelmente deixadas de lado.
No geral, temos um bom drama de época, com uma produção competente e uma história que foca principalmente nas mulheres e no sofrimento a que este gênero sempre esteve sujeito, hoje menos do que nunca, mas ainda em níveis que não podemos aceitar. Mesmo derrapando em vários momentos, ainda cumpre seu papel, com uma narrativa que segue um crescendo capítulo a capítulo e termina de forma previsível e digna da novela das 8.
Leave a Comment