Crítica: Nico, 1988
Caetano Veloso diz que o século XX foi imaginado por Andy Warhol. Parte integral da imaginação desta figura apocalíptica e vitalícia foi justamente uma mulher de sotaque alemão. Ícone taciturno. Voz inebriante. Mordaz. Infamante. Anjo caído de lábios fogosos e talento exuberante. Nico é um daqueles casos de inesquecíveis homines sapientes, que prefere queimar rápido a apagar lentamente. A musa de Warhol e parte viva do Velvet Underground teve que conviver com a perene objetificação ao arquétipo da “femme fatale”, reforçado tanto pela música do próprio Velvet quanto pelo lado esquerdo de sua cama ocupado por personas como Jim Morrison e Brian Jones.
Em sua cinebiografia, a diretora Susanna Nicchiarelli empenha decadência, heroína e uma câmera claustrofóbica para conceder postumamente uma alforria à cantora. Explorando os restos mortais de sua carreira, o filme é sobretudo um exercício de humanização de um rosto condenado pela história a permanecer enclausurado na tatuagem de mulher misteriosa, irresistível e plana. Buscando os últimos instantes de uma carreira já despedaçada, Nicchiarelli vai em busca da essência de uma mulher amargurada pelo tempo e desferrolhada pelo vento.
Apesar de um ritmo meia-boca, uma narrativa um tanto quanto enguiçada e sem direção, o empenho e presença de Trine Dyrholm, intérprete de Nico, concede um folego a película que consegue prender a atenção, mesmo sem nunca decidir exatamente o que pretende. Flertando com um perfil intimista e tentada ao comentário social, Nicchiarelli deixa Dyrholm se apoderar do filme e domá-lo. No fim, Nico 1988 é muito mais sobre as angústias de uma condenada, sobre os últimos momentos de uma vida de profundas feridas, do que sobre qualquer outra coisa.
Os fãs do Velvet vão sentir falta de alguns flashbacks com a presença de Reed. Os admiradores de Warhol também sairão com a sensação agridoce de ter esperado até o fim por um infame desenvolvimento da relação de Nico com o gênio. E o povo do cinema vai sentir um gosto de potencial desperdiçado pela falta de pulso de uma direção perdida, apesar do bom filme. Fica, no fim, a certeza de que não importa a que gueto pertença, os que saem do cinema estão condenados a cantarolar “These Days” em todas as festas de amanhã.
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