Crítica: Quincy
Eu sempre desconfiei de toda pessoa que não tenha intimidade com a música. Quando digo intimidade, quero dizer uma relação extremamente próxima – não tecnicamente, não historicamente, mas emocionalmente. Parece-me impossível passar por um dia sem escutar alguma canção ou, no mínimo, sem assobiar qualquer melodia que seja. Música parece algo intrínseco à vida. Certa vez, conversava com uma pessoa (eu acho que era uma pessoa, porque…) que dizia não ter qualquer preferência musical, que passava dias sem escutar nada. E eu me questionava sobre aquilo; como era, ao menos, possível. Será que eu estava exagerando em minhas considerações? Eis que um dos maiores gênios da História da Música lança a máxima que resumiu meu pensamento: “Não dá para viver sem água e sem música. Simplesmente não dá”. Quincy Jones é o nome do autor da frase. Quincy é o novo documentário da Netflix, que conta a vida deste lendário homem.
Não sei quantos anos você tem. Não sei suas preferências musicais. E, por isso, pode ser que você nunca tenha ouvido falar nesse nome. Ou, talvez, que tenha escutado, mas sequer se deu ao trabalho de saber quem era ou sobre o que era. Mas DEFINITIVAMENTE você já esteve relacionado a esse nome. Quincy Jones é produtor musical, compositor, produtor cinematográfico, produtor de séries, ativista político. Esteve ao lado de Michael Jackson, fazendo-o conhecer o auge; esteve ao lado de Ray Charles, em momento semelhante; e esteve acompanhando Frank Sinatra, em seu clímax, também. Portanto, não há como um ser vivente não ter tido contato com Quincy. E só por esse resumo – muito, muito breve – já vimos que um filme sobre a vida dele jamais poderia ser ruim. Teria que ser o oposto de seu talento para conseguir realizar um feito desagradável tendo em mãos o material que esta pessoa já produziu para a Humanidade. Dirigido por sua filha, a atriz Rashida Jones, junto com Alan Hicks, o filme consegue nos passar um pouco da magia de Jones.
Entrecortando passado e presente (infância, começo da carreira e seu momento atual), Rashida vai construindo a história de seu pai. “Não fui nascido em berço de ouro”, relata-nos Quincy. Muito longe disso, esse ícone mundial da música, este neto de uma ex-escrava perdeu contato muito cedo com sua mãe, que por problemas mentais teve que ficar em uma instituição por algum tempo, e vivia na rua. Era a época das gangues e ele se metia com pessoas desse nível. Como ele próprio relata, não fosse o acaso de ter parado frente a um piano e ter magicamente se envolvido com a música naquele pequeno instante, ele já não estaria mais vivo ou certamente viveria preso. Esta vida nada fácil fez dele um lutador ou – como o mesmo gosta de colocar – um corredor (daqueles de longa distância). Conseguindo se envolver nesse mundo, logo foi se destacando, pois poucos eram como ele, que conseguia produzir novos arranjos, novas concepções da música e releituras em tão pouco tempo, como atesta o imortal Sinatra. Ao conseguir chegar onde queria, Quincy simplesmente seguiu em sua corrida, querendo mais do mesmo e mais de todo o resto que poderia alcançar. Não à toa, todos os grandes do planeta (até mesmo grandes personalidades, como Mandela, Obama e Bispo Tutu) fizeram reverência a ele.
Conquistar o mundo, como ele fez, tem o preço do sacrifício. Isso é expresso nos diversos casamentos que ele teve. O afastamento da família, por conta de um nível absurdo de trabalho, fazia com que os relacionamentos de Quincy esfriassem e não durassem. Fazia com que alguns de seus filhos crescessem longe e, para um familiar, isso é de dilacerar a alma. Fora isso, passou algumas vezes por problemas de saúde com chances mínimas, fazendo-o parecer um ser mitológico. A impressão que temos, em determinado momento, é que não existe uma coisa no mundo que ele não consiga. Até mesmo vencer as probabilidades de questões sérias com o corpo. Não à toa, o cara está nos seus 85 anos e seguindo em sua corrida.
É inspirador ver como um neto de ex-escrava, sem um núcleo familiar sólido, vivendo nas ruas à mercê de gangues e toda sorte de péssimas influências, pôde vencer (mais uma vez contra todas as probabilidades) o que se colocava em seu caminho, seguindo em sua corrida determinada até um ponto de chegada que ele mesmo colocava para além. Quincy não parou. Seguiu. E seguiu sempre para o ponto futuro. Seja qual for o elixir que ele tenha tomado, ficamos com a vontade insaciável de buscar essa mesma fonte de poder. Mas o que Rashida e Hicks fazem aqui é nos mostrar que esse elixir é a vontade de potência de Jones. Vontade de potência. Talvez essa seja a resposta que possa justificar essa história real, pouco crível até mesmo em uma ficção. Não há nada que ele não pudesse ter feito. No duro, no duro, há, na verdade, uma coisa. Quando perguntado, em uma entrevista, “há algo que não conseguiu ter realizado, Quincy?”, ele, após uma risada, definiu: “casamento”. De fato, até para o velho lendário e mitológico Quincy, esse é um “lugar” ainda a ser explorado.
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