Crítica: Sierra Burgess é uma Loser (Sierra Burgess is a Loser)
“Loser” (fracassado) é uma das expressões mais comuns na cultura americana. Tudo o que um americano faz em vida é evitar ser um perdedor e se tornar bem-sucedido. Isso é passado para as pessoas desde que nascem e em nenhum outro lugar esse território é tão demarcado quanto na escola. A configuração sociológica escolar dos Estados Unidos é algo para além do bizarro: a formação de grupos muito bem definidos, a prática da exclusão, a estigmatização daqueles que são “aberrações”, “esquisitos” e toda sorte de adjetivos pejorativos, em diferença daqueles que são os modelos do “bom” americano, o bem-sucedido, o “popular”. Dentro desse universo ainda se destacam gordos e atléticos. No entanto, essa construção se torna cada vez mais idiota: o inteligente é nerd e o atleta ignorante popular se basta. É muito claro o quão nocivo o padrão americano (e não presente só por lá) é para sua sociedade. É sobre isso a mais nova produção da Netflix Sierra Burgess é uma Loser de Ian Samuels.
Sierra Burgess (pela Stranger Things Shannon Purser) é uma colegial acima do peso que se sequer liga para isso. Filha de um escritor e de uma psicanalista, super bem-sucedidos, Sierra tem um intelecto muito mais desenvolvido do que o normal para a sua idade. E esse seu jeito parece bastar para ela, ignorando o padrão de beleza imposto pela sociedade ocidental. É exatamente isso que a faz não ser atingida, e ainda rebater com humor fino, pelas investidas de sua algoz escolar Veronica (por Kristine Froseth, “clone” de Margot Robie). Esta, por sua vez, querendo balançar o mundo da outcast Sierra, ao receber um flerte de um atleta atípico (pois ele anda com meninos também fora do padrão), dá o telefone de Sierra fingindo ser o seu. Para Veronica, “quem anda com fracassado também é fracassado” e isso é motivo para ela não querer sair com ele. O garoto, Jamey (por Noah Centineo, que atua de maneira idêntica ao seu personagem em “Para Todos os Garotos que Já Amei“), começa a conversar pelo celular com Sierra, enquanto pensa ser com Veronica. A protagonista, inteligente demais para cair no “conto do vigário”, percebe o trote da popular nojentinha, mas embarca na fantasia. De alguma forma, o simples conversar com Jamey é o suficiente para satisfazer parte de seus sentimentos. É evidente que ela começa a se apaixonar pelo rapaz.
Quando, porém, Sierra descobre que o namorado de Veronica a deixou, propõe a seguinte troca: ela ensina Veronica (“carinhosamente” chamada por suas irmãs de “Retardônica”) a ser mais inteligente, para impressionar o ex-namorado, que agora é universitário, ao passo que Veronica dá material para que Jamey continue a acreditar que está a falar, de fato, com ela. Já sabemos que essa comédia romântica vai desenvolver uma narrativa de idas e vindas e encontros e desencontros. Sabemos, também, que, ao conhecer mais a fundo a personagem de Veronica, observaremos que sua família é desestruturada e que esse modo de agir é fruto do seu ambiente caótico. Tudo isso vai gerando empatia pelas personagens, que vão construindo um laço entre si. Mas nada disso impede que a teia auto-tecida por elas próprias comece a sufocá-las em meio a esse universo mentiroso que criaram. A historinha, de início inofensiva, começa a se tornar nociva à medida em que sentimentos vão se tornando concretos. Tanto de Jamey, quanto de Sierra e – porque não? – de Veronica, além, ainda, de fazer uma se tornar um pouco da outra (tanto no melhor, quanto no pior sentido).
Parece a típica história já vista um bilhão de vezes, apesar de em alguns momentos não cair no lugar-comum, pelo fato de a protagonista não se incomodar, a maior parte do tempo, com sua aparência – e, no duro, porque ela se incomodaria? É claro que em algum momento ela se sente desafiada em sua auto-estima, mas o filme foge ao discurso gordofóbico – e responder com inteligência às provocações, ao invés de ser engolida por uma espiral de depressão, o filme traz muito da mesma estrutura presente neste tipo de produção. O melhor amigo gay, que é um dos recursos de alívio cômico, na figura de Dan (pelo divertidíssimo RJ Cyler), os plot-twists já esperados e deveras comuns e uma conclusão que já se esperava desde o princípio fazem desse título ser um pouco mais do mesmo. Fora isso, a escolha por uma trilha sonora saída diretamente de Stranger Things (talvez para causar uma identificação mais imediata do público para com a obra, já que o rosto principal é conhecido dessa série) é completamente fora de sentido: em uma cena de beijo específica, começa aquele “tan-tan-tan” anos 80 e você já espera o surgimento do Demogorgon. Mas era um cena de beijo! Vai entender.
O fato de mudar um ou outro elemento, trazer algo um pouquinho diferente do que o que se costuma ver, não é o suficiente para fazer desta produção algo mais notável. Apesar de seus momentos divertidos, passa-se a maior parte do tempo com aquela sensação de que você já havia lido o roteiro, o que permite esperar o que vai acontecer nas próximas cenas. A falta de expectativa vai gerando o desinteresse ao longo da narrativa, o que é ratificada por uma série de soluções forçadas para que, na conclusão, cada personagem resolva os seus conflitos da melhor forma possível e sejam agraciados com o idealizado “e viveram para sempre felizes”.
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