Crítica: Apóstolo (Apostle)
Quem acompanha o MetaFictions já há algum tempo sabe que não há filme para o qual se tenha pagado mais pau, tanto em quantidade quanto em intensidade, do que o já antológico “Operação Invasão“, nada menos do que o melhor e mais inovador filme de ação filmado nos últimos 10 anos. Ainda que seja uma produção modesta da Indonésia, o longa revolucionou todo um gênero e catapultou ao estrelato internacional o sensacional Iko Uwais, deixando em 2o plano nos corações dos fãs dos filmes de porrada o seu diretor, o galês Gareth Evans. Mais do que ter tido o mérito de ter descoberto e lançado Iko Uwais, Evans também demonstrou um fascínio tal pela violência que o permitiu reinventar um gênero e criar um filme que já nasceu um clássico cult.
E, puta que o pariu, Evans acaba de conseguir isso de novo. Apóstolo, seu mais novo filme, é uma perturbadora jornada de deslumbrante violência, produzida com um esmero sem igual em obras semelhantes e autoral até a medula na estética cinematográfica apresentada.
Evans, que dirige, edita e assina o roteiro do filme, parece ter pegado alguma coisa do folclore celta de seu País de Gales natal para criar um conto envolto em paganismo, que é perturbador e instigador em partes iguais. Ao mesmo tempo que ele saciará a sede de sangue daqueles entre nós que curtimos um gore, toda a insuportável tensão criada desde o início e mantida por quase o filme todo impede que os menos afeitos a banhos de sangue desliguem a televisão.
A trama é simples. Uma seita, liderada pelo profeta Malcolm (Michael Sheen, excelente), que vive isolada em uma ilha sequestra a filha de um ricaço e exige resgate por ela. Seu irmão, o misterioso e viciado em láudano Thomas (Dan Stevens), se infiltra na seita para talvez conseguir salvar sua irmã. É a partir dessa premissa quase que simplória que a história toda se desenvolve, sempre flertando pesadamente com o thriller e com aquele tipo de terror de antigamente, o que foca muito mais em perturbar e chocar do que em assustar o espectador com artifícios forçados como os famigerados jump scares.
Para contar esta história, Evans usou uma equipe praticamente desconhecida em Hollywood. O nada menos que magistral desenho de produção, responsável por figurinos e cenografia, é do também galês Tom Pearce. Já a cinematografia fica a cargo de Matt Flanery, o mesmo fotógrafo que havia trabalhado com o cineasta em seus filmes indonésios e que aqui mostra mais uma vez um olhar ímpar e embelezador de tudo aquilo que é feio e mundano. Ângulos de câmera pouco ortodoxos, tomadas aéreas nauseantes, e um uso quase professoral do diafragma em cenas sufocantemente claustrofóbicas ajudam de forma decisiva na construção de toda a ambientação sinistra da Ilha de Erliden.
Tudo isso contribui para que os 130 minutos de exibição, o que o caracteriza como um filme relativamente longo, não prejudiquem o ritmo da obra. Ela é construída de tal forma que a atmosfera criada por todos os elementos técnicos da produção sufoca e oprime o espectador a todo momento, com uma trilha sonora primorosa, estranha e quase que onipresente ao longo de toda a exibição, que objetiva flagrantemente e consegue inequivocamente aumentar a tensão de forma quase que criminosa. Não por acaso, mais uma vez esta é assinada por gente estranha à Hollywood, os indonésios Aria Prayogi e Fajar Yuskemal.
A atmosfera claustrofóbica e de desastre iminente é feita ainda mais impactante pela interpretação ensandecida de Dan Stevens como o protagonista Thomas, um sujeito que a todo momento parece estar à beira de uma síncope. Stevens corre um risco enorme com suas escolhas enquanto ator dentro do contexto deste filme, despindo-se de qualquer inibição para se entregar de corpo e alma ao seu personagem, correndo ali pelo limite tênue entre a atuação intensa e a exagerada. O restante do elenco, para quem o roteirista Evans escreveu diálogos falados no vernáculo utilizado no começo do século 20, segue o mesmo nível de competência, com destaque para o quase sempre ótimo Michael Sheen.
Servindo também como uma homenagem ao inominável e enlouquecedor terror de gente como Edgar Allan Poe e H.P. Lovecraft, além de evocar o recente e fantástico “A Bruxa” (indicado em nosso Garimpo Netflix: Terror!), Apóstolo não se esquece das origens em filmes de ação de toda a sua equipe de produção ao também apresentar algumas cenas de porradaria e violência desmedida que nada têm de gratuitas dentro do escopo pretendido, mas que abrilhantam a obra e a enquadram dentro de um híbrido possivelmente inédito formado pelos gêneros horror/thriller/ação.
Assim como já fizera anteriormente, Gareth Evans mais uma vez apresenta um filme que obviamente não é para qualquer um, mas que, para quem souber apreciá-lo e perdoar alguns de seus poucos furos de roteiro, se tornará um clássico cult instantâneo. Um filme divertidíssimo e impactante, a respeito do qual acredito que ainda falaremos muito, ainda que em fóruns obscuros da internet.
Leave a Comment