Garimpo Netflix: Fortunas da Guerra
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Uma das cenas mais marcantes da História do Cinema vem daquele que é o melhor filme de ficção científica da História do Cinema, de autoria de um cineasta que se apresenta como o melhor da História do Cinema. Esta sequência é um resumo da História Humana. A obra referida (apropriadamente eleita em 1o lugar em nosso Top 10 – Filmes de Ficção Científica) é “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, quando vai às origens da espécie humana, de acordo com as orientações científicas, apresentando dois grupos de australopithecus separados pelas relações de poder. Um deles detém a posse da água local; o outro é excluído desse recurso. Porém, quando descobrem uma arma e, com isso, aumentam sua força, retornam à região fértil para, através do novo mecanismo, tomarem à força aquilo a que foram negados. Kubrick ilustra ali, muito provavelmente, o que teria sido a primeira guerra dos hominídeos. Ele mostra, acima de tudo, a essência bélica natural destes seres que originaram os homens.
Independente da era, independente do espectro que possa tomar, a guerra surge como uma ação inerente à condição humana. Mas, muito mais do que explosões, conquistas e números, o legado deste conflito afeta povos inteiros, culturas e, principalmente, indivíduos. De um ou de outro lado, seja o homem que atira, seja o alvejado, ou os familiares deixados lá atrás, em casa, todos – absolutamente todos – sofrem as consequências dos atos de ódio que forjam estes seres errantes… nós.
“A crueldade tem um coração humano
Todo homem cumpre seu papel
O terror dos homens que matamos
O coração humano ainda está faminto” (Steve Harris)
– Uma Guerra (Krigen/A War), de 2015, dirigido por Tobias Lindholm
Indicação dinamarquesa para o Oscar 2016, Uma Guerra conta a história de Claus (em boa atuação de Pilou Asbæk), um comandante da Dinamarca em pleno Afeganistão, tendo que se responsabilizar pelas ações de seu pelotão e pelos cuidados aos civis locais enquanto administra os riscos constantes do Talibã e convive com a saudade de casa e de seus familiares. Em uma das investidas de seus homens, Claus necessita tomar uma decisão intempestiva, afetando uma região de civis. Em seu retorno para casa, o bem-intencionado militar terá que passar por um julgamento pela acusação de crime de guerra.
Tobias Lindholm consegue realizar três tipos de filme em um só, não se perdendo em seus núcleos dramáticos, mas conseguindo costurar a narrativa de forma sólida. Temos o momento da guerra, no qual acompanhamos os dias dos soldados e como aquele cenário os afeta psicológica e emocionalmente, fora fisicamente; contemplamos o retorno para casa, entendendo o reforço de seus dramas pessoais, a necessidade de reconstruir os laços sentimentais entre os entes-queridos enquanto a preocupação do ambiente de guerra permanece presente em seu imaginário; e a tensão frente ao julgamento que pode tirar Claus de um inferno para colocá-lo em outro.
Para o mundo, para seu país e para si próprio, Claus não consegue se ver fora de um palco de guerra.
– O Hóspede (The Guest), de 2014, dirigido por Adam Wingard
A família Peterson está levemente desestruturada. O filho mais velho, combatente do exército americano, agora é apenas mais um número na estatística de baixas de guerra, mas sua ausência em casa é sentida pela mãe, pai, irmã e irmão mais novo (que ainda tem que conviver com os abusos dos populares na escola). No entanto, o vazio do primogênito passa a ser preenchido com a inesperada chegada de David (Dan Stevens), que se diz amigo próximo do soldado Peterson. Tê-lo em casa é como ter uma parte do ente-querido de volta. Dessa forma, ainda que a contragosto de alguns, David vai se fazendo presente na vida desta família cambaleante diante de seus sofrimentos diários.
Mas, com o passar desses dias, David tenta, cada vez mais, se meter nos assuntos dos Peterson. Resolver os conflitos do garoto-excluído, ajudar a menina em seus dramas emocionais e dar suporte aos problemas cotidianos que os provedores devem administrar. No entanto, suas atitudes despertam a desconfiança da jovem garota, que vai descobrindo que, talvez, David não seja exatamente quem diz ser; ou não só o que diz ser.
O fardo da guerra, aqui, parece ser contínuo, à medida em que os rastros dos confrontos vão sendo arrastados cada vez mais para perto daqueles que gostariam de esquecê-la.
– Relatos de Guerra (Hyena Road), de 2015, dirigido por Paul Gross
No meio do palco de guerra do eterno Afeganistão, os soldados representados nesse filme de Paul Gross (que também assina o bom título de guerra Paschendale – uma das inspirações para a composição do Iron Maiden citada na introdução) são canadenses. Há o intrínseco debate ocidental versus Oriente Médio, no qual os daqui cumprem seu papel de homem civilizador. No entanto, o discurso quanto a isso é leve e não torna a obra explicitamente ideológica. Estamos muito mais de frente para o quão destruidor em relação a todas as vidas em jogo é uma ação dessa grandeza.
Três personagens com características diferentes (um criado para ser uma máquina de ataque; outro treinado para ser um comandante da base; e um terceiro nascido nesse território historicamente disputado, quase como uma entidade que surge quando invocada), mas que estão ligados pela mesma natureza: aqui estes seres humanos, que convivem, em meio à guerra, com suas relações pessoais e construções emocionais, são forjados pelo fogo. Fogo este que, como falado no início, se apresenta como a essência humana.
Ocidentais ou orientais, todos se entendem perfeitamente bem quando estão juntos para a promoção do caos.
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