Crítica: Bohemian Rhapsody

Eu me lembro que estava sentado na sala de casa, de frente ao aparelho de som do meu pai onde aguardava a saudosa Rádio Cidade tocar “aquele grande sucesso” para eu poder gravá-lo em fita cassete, quando o locutor anunciou que Freddie Mercury havia falecido em decorrência de complicações da AIDS. Eu tinha acabado de completar 15 anos naquele longínquo novembro de 1991 e a constatação de que eu jamais veria meu cantor favorito ao vivo me fez chorar como uma criança. Meus pais foram ver o Queen no Rock in Rio, em 1985. Eu era ainda novo demais para ir ao show e assisti pela TV, com minha avó, na esperança vã de reconhecer minha mãe pulando na multidão. O que vi foi a magnífica performance da banda que se tornaria, pra mim, a referência máxima do que um grupo de rock deveria ser. Hoje dentre minhas posses mais queridas estão a minha coleção com todos os CDs do Queen, a guitarra Red Special, reprodução da peculiar guitarra construída pelo guitarrista Brian May e a sixpence que ele usa como palheta, comprada no show Queen + Paul Rodgers em sua passagem pelo Rio de Janeiro em 2008. Bohemian Rhapsody está minha lista de top 5 maiores obras da arte da história, juntamente com a Noite Estrelada de Van Gogh e a Nona Sinfonia de Beethovem, e eu invariavelmente sinto vontade de chorar toda vez que escuto a canção (razão pela qual eu quase nunca consigo cantá-la do inicio ao fim).

Rami Malek in Bohemian Rhapsody (2018)

Por quê estou contando isso tudo? Porque eu sou invariavelmente fanboy de Queen e foi extremamente difícil escrever a critica de Bohemian Rhapsody com um olhar neutro. E, de repente, pergunto-me: por que diabos deveria me preocupar com isso? Foi o fã de Queen e de Freddie que assistiu ao filme, e foi pra esse – e para muitos outros fãs – que o filme foi feito, portanto é como fã que devo assinar meus comentários. E, como fã, eu saí extasiado do cinema! O filme me ofereceu tudo (ou quase tudo) o que eu imaginei ver na tela quando tal produção foi anunciada, vários anos atrás.

A primeira notícia que recebi era que Sacha Baron Cohen faria o papel de Freddie no filme. “Perfeito!”, pensei. O rosto, o bigode, o queixo, o potencial de ter o mesmo tipo de humor ácido, o mesmo vocabulário corporal. Ao que parece Cohen insistiu em mostrar a intimidade de Freddie de forma explícita. Uma intimidade que o cantor fez questão de preservar durante toda a vida e, talvez por isso mesmo, os integrantes da banda – e produtores do filmes – decidiram respeitar a vontade do amigo e buscaram outra pessoa para personificá-lo. Surge Rami Malek, o brilhante protagonista da série “Mr. Robot”, que recebe a incumbência ingrata de não apenas ser Freddie Mercury no cinema mas também de substituir Sacha Baron Cohen, que todos cotavam como o ator perfeito para o papel.

Joseph Mazzello, Rami Malek, Gwilym Lee, and Ben Hardy in Bohemian Rhapsody (2018)

E esse foi, para mim, o primeiro acerto do filme. Malek recria com maestria cada um dos trejeitos, cacoetes e expressões do famosíssimo vocalista do Queen, um dos personagens mais filmados, fotografados e reconhecidos da cultura pop mundial. Cada detalhe está lá: a voz, os olhares, os punhos no ar, os pés movendo-se no palco, as mãos tocando o piano com os pulsos dobrados, os maneirismos espalhafatosos e as sutis tentativas de esconder os dentes quando nervoso (eu fui tão dentuço quanto ele e conheço bem aquela puxada do lábio superior para tentar fechar a boca). Não apenas Malek, mas Ben Hardy como o bateirista Roger Taylor, Joseph Mazzello como o baixista John Deacon e Gwillym Lee como o guitarrista Brian May estão irretocáveis. Lee reproduz o tom de voz de May com tanta precisão que por vezes parece que é o próprio guitarrista falando no filme.

Depois de definido o cast, Bryan Singer – diretor que também foi discretamente afastado do projeto já nos seus quilômetros finais – se põe a filmar o show do Queen no Live Aid, considerado por muitos a mais impressionante performance da banda e a mais memorável de todo o festival. Singer filma praticamente todo o show, recriando cada momento da apresentação da banda em seus mínimos detalhes. A cena foi a primeira gravada pelo elenco, no primeiro dia de filmagem, e a performance do elenco é tão impressionante que a sensação que se tem é que se está nos bastidores, na coxia, assistindo ao próprio Queen em Wembley. E aquele garoto de 15 anos que jamais veria Freddie ao vivo se permitiu chorar novamente, dessa vez de alegria. A tela grande, o som surround, a voz das milhares de pessoas cantando em coro me ofereceram a ilusão de ter estado lá, naquele dia, há mais de 30 anos. Por essa oportunidade única, eu – em nome de todos os fãs – agradeço imensamente os produtores do filme. Se havia alguma dúvida quanto à capacidade de Rami Malek em tornar-se Freddie Mercury, tais dúvidas desaparecem logo na cena de abertura quando o cantor aquece-se antes do famoso show. Fala-se em Oscar para Malek e eu honestamente espero que as fofocas estejam certas.

Rami Malek and Lucy Boynton in Bohemian Rhapsody (2018)

Há, sim, algo que eu possa apresentar como crítica á película e, sim, algumas coisas me desagradaram. Senti falta de mais momentos em que se pudesse ver a dinâmica interna da banda. Freddie, em certo momento, comenta sobre o hábito de Brian May reescrever passagens de suas composições, ou sobre a maneira ríspida como Roger Taylor se manifestava nas discussões do grupo, mas não se vê muito disso no filme. Há, claro, cenas hilárias e deliciosas que permitem que o público espie como deve ter sido o momento de concepção de algumas de suas canções favoritas, mas o filme foca, talvez demasiadamente, na relação toxica de Freddie com seu amante Paul Prenter (Allen Leech, convincente como um daqueles “bicões” que sempre acompanham as celebridades), supostamente responsável pela tragédia que se abateu ao cantor.

Pareceu-me que o longa se esforçou demais para vender a ideia de que havia um vilão por trás de tudo, além de se exceder no tempo dedicado a tal relacionamento, tornando o filme lento em certos momentos e longo no fim das contas (2 horas e 14 minutos). Talvez o mesmo tempo pudesse ter sido mais bem usado para desenvolver o relacionamento entre Freddie e Mary Austin – esposa do cantor que durante quase todo o filme parece ser apenas mais uma espectadora de tudo o que acontecia – e Jim Hutton – companheiro de Freddie até o fim de sua vida e que aqui aparece quase como uma nota de rodapé.

Imagem relacionada

Apesar de tudo isso e, provavelmente, não por acidente, o filme brilha quando mostra a banda e sua música, no palco ou no estúdio, trazendo aos fãs tudo o que eles poderiam sonhar nesse quesito. O figurino, a direção de arte reproduzindo os palcos, a escolha das músicas desde o inicio da banda até seu auge, tudo parece ter sido meticulosamente estudado para agradar aos olhos daquele fã mais ardoroso. Aquele que sabe quantos copos de Pepsi haviam sobre o piano de Freddie quando ele toca os acordes iniciais de Rhapsody em 1985. O filme foi tão inspirado por e produzido para os fãs que houve uma campanha online pra que os próprios fãs se gravassem cantando as músicas do Queen e enviassem as gravações para serem usadas na trilha do filme (o making of pode ser visto aqui – https://www.youtube.com/watch?v=Ijxu2EHV5XA ). Boa ideia da produção, ótima sacada de marketing. E por que deveria ter sido diferente? Mais que uma cinebiografia, Bohemian Rhapsody é uma merecida homenagem a um dos maiores artistas do século XX e a sua legião de fãs, e entrega ao público o Freddie que todos amamos. O outro, aquele que o próprio Freddie fez questão de mostrar apenas para os mais íntimos e que Baron Cohen queria expor, deixemos que ele respeitosamente descanse pois ele não nos pertencia.

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