Crítica: A Casa Que Jack Construiu (The House That Jack Built)
“Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?”
-O Tigre, William Blake
Na saída da exibição de A Casa Que Jack Construiu, um companheiro de cabelos brancos, esses que se encontra em uma sessão ou outra, toma um café, mas apesar do semblante ficar tingindo nas paredes da memória nunca se sabe o nome, veio falar sobre a Divina Comédia de Dante. Ele apenas constatou a cruel realidade, que enquanto a primeira parte da obra, o Inferno, é a mais fascinante, seu último livro, O Paraíso, é simplesmente insuportável. Ninguém entende melhor essa verdade que Lars Von Trier.
Schopenhauer já dizia que a única alegria da ovelha é assistir outra ovelha ser devorada pelo lobo e é nesse mesmo tom putrefato que Von Trier envolve o espectador numa sincera confissão acerca da natureza de sua própria arte. O diretor dinamarquês é um dos mais controversos personagens do cinema moderno. Chegou a ser persona non grata em Cannes, assinar filmes de um mau gosto avassalador como “Ninfomaníaca”, mas ao mesmo tempo tem um inebriante talento já constatado seja em “Os Idiotas” ou no belíssimo “Melancolia”. A realidade é que o fio condutor de seu trabalho é o desejo de chocar, provocar, épater la burgeoise como diriam os franceses.
A Casa que Jack Construiu é sem dúvida sua provocação suprema, seu triunfo derradeiro, a defesa incontestável de seu trabalho. É no psicopata com TOC, brilhantemente interpretado por Matt Dillon, que Von Trier consegue escancarar a necessidade de se observar a selvageria misógina que se esconde nos confins do homem branco moderno. De olhar no espelho num universo onde a negatividade é sufocada por comprimidos, é tempo de perceber o tigre de Blake, que se esconde no suposto elucidamento moderno. Desejo imorredouro por carnificina que ganha contornos hiper-racionais.
Em si a película é um show à parte. Com uma câmera de documentário, a obra deixa sua violência nua e crua ganhar tons fascinantes, até certo ponto cômicos, pelo grotesco em si. A estrutura de casos favorece a maior qualidade da obra: sua sinceridade. Não há mea culpa ou maiores explicações. A violência berra por si. E ao invocar o inferno dantesco em seu psicopata, o dinamarquês borda um suspense perfumado e instigante. Por sua vez, a trilha sonora, que vai de Bowie a Bach, ajuda a costurar essa seda de vísceras arrancadas que vai deixando o espectador mais atiçado que propriamente enjoado. Ao apelar ao nosso instinto de ovelha, Von Trier explica sua própria natureza, perguntando até que ponto a arte precisa ser brutal para ser relevante, até que ponto é possível haver arte sem o desespero, sem o tigre e a morte do cordeiro.
Se o filme peca, peca por seu excesso, com seios arrancados, sadismo inabalável, mas ecoando a parábola do escorpião, é a natureza de Von Trier, a natureza de um trabalho destinado a provocar e demostrar que no fim o que nos interessa é o inferno e não o paraíso. Assim, a obra se prova um caldeirão dantesco de humanidade, encontrado na humanização do sadismo e de seu protagonista doentio a busca pela analogia da falta da insignificância cósmica. É justamente no fascínio e na dor do outro que o psicopata tenta a partir da carne alheia desvelar poder sobre a sua. E num tempo onde a sinceridade das chamas desse inferno está travestida em canções sacras, cabe a Lars Von Trier escancarar as mandíbulas da selvageria e cabe a nós assistirmos seu banho de sangue, pois no fim somos todos voyeurs de nosso próprio apocalipse.
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