Crítica: Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman)
Alguns poucos cineastas conseguem a façanha de se tornarem mais que filmmakers. Diretores como Scorsese, Antonioni, Burton, Glauber Rocha, e outros seletos, criam uma identidade cinematográfica tão forte, tão marcante, que por um frame de suas produções você já identifica a marca e o olhar de seu artífice. Desse grupo seleto de diretores-autores-marcas faz parte, sem nenhuma sombra de dúvida, Spike Lee.
Seu cinema é pautado de forma especifica e militante na denúncia das tensões raciais nos Estados Unidos e, por extensão, ao redor do mundo globalizado. Cáustica, indigesta e sarcástica, sua obra nunca tentou escamotear ou eufemizar a assinatura ideológica e atuante do diretor. E Lee pagou o preço de sua posição, flanando entre ver alguns de seus filmes serem aclamados como obras-primas e outros serem tachados de peças puramente panfletárias. Mas de uma coisa nenhum crítico vai poder acusar seus filmes: passarem despercebidos.
Infiltrado na Klan, sua mais nova produção, é um daqueles filmes de Lee que serão lembrados na categoria das obras-primas. Exibindo sua melhor forma, o diretor cria uma comédia soco no estômago, que consegue ser, ao mesmo tempo, deliciosa de se ver e extremamente pesada para se digerir. Baseada em uma história real, o filme conta as peripécias de Ron Stallworth (John David Washington, que traz em seu sobrenome a marca da realeza da atuação norte-americana, filho que é do maravilhoso Denzel Washington), primeiro policial negro a ingressar na força da cidadezinha de Colorado Springs, nos anos 70. Em meio às tensões pela luta pelos direitos civis, Ron consegue a façanha de se infiltrar no braço local da Ku Klux Klan, convencendo seu colega judeu Flip Zimmerman (Adam Driver) a se passar por ele nos encontros pessoais com os supremacistas brancos.
Em suas 2h15min de exibição, Infiltrado na Klan é genialidade cinematográfica e militância artística pura. Caro leitor Metafictions, estamos frente a um dos filmes do ano. Spike Lee costuma dizer que produz gritos de alertas e, aqui, o grito é potente. A denúncia do racismo chega de forma contundente, desde o mostrar do irracionalismo e o patético idiotismo que move os membros da KKK (destaque para Jasper Pääkkönen, no papel de um dos líderes da Klan local) até às delicadas relações raciais hoje, passando pelos conflitos em Charlottesville no ano passado e pela administração de Donald Trump (que em discurso que entrará para a história como a encarnação da imbecilidade, do cinismo e da maldade disse haver gente de bem entre os supremacistas e neonazistas). Nem o próprio cinema é poupado, Lee exibe cenas de “O Nascimento de uma Nação“, clássico americano dirigido por D.W. Griffith, obrigatório em várias faculdades de Cinema, que, em 1915, retrata os negros (feitos por atores brancos pintados) como selvagens, violentos e dá status heroico a Ku Klux Klan. Aliás, a película foi usada como material de propaganda pela KKK até meados da década de 70 e ainda é exibida em vários encontros dessa galera.
Artística e tecnicamente, a produção é uma coleção de acertos. A direção magnifica de Spike Lee encontra apoio em roteiro primoroso que ganha mais força através de uma edição ágil, provocativa e marcante. A fotografia de Chayse Irvin é arrojada e se amplifica nos igualmente arrojados ângulos de câmera, dialogando diretamente com a blaxploitation do cinema, contemporâneos à história narrada. A cena em que Ron e seu interesse amoroso, a ativista Patrice Dumas (Laura Harrier, inspiradíssima), avançam de arma em punho é de tirar o fôlego pelas referências ao cinema negro e a beleza dos ângulos e da fotografia. Trilha sonora, figurinos e direção de arte só colaboram para a excelência que permeia cada cena.
Não poderia encerrar esta crítica sem dar o merecido aplauso para a dupla John David Washington e Adam Driver. Washington mora no seu Ron, daqueles casos nos quais o espectador vê uma atuação e não consegue mais imaginar outro ator no papel. Impecável e digno de premiações. Driver, que tem se mostrado um dos atores mais versáteis da atualidade, exibe elaborada performance como o parceiro que vai descobrindo mais de si e do mundo através da missão em que se envolve. Que dupla, senhores.
Por fim, resta dizer que Infiltrado na Klan é obrigatório e pertinente para os nossos tempos, tempos nos quais “o racismo voltou a ser mais violento e explícito”, nas palavras fortes de Angela Davis, a lendária ativista e acadêmica que, em 1968, se juntou aos Panteras Negras. Mas, se por um lado, o filme nos leva tristemente a reconhecer que as estruturas racistas se mantém fortes ainda hoje, por outro, lindamente ele nos faz ecoar os versos de Maya Angelou e lembra que, apesar dos racistas de lá e dos daqui também:
“Das choças dessa história escandalosa / Eu me levanto / De um passado que se ancora doloroso / Eu me levanto / Sou um oceano negro, vasto e irrequieto / Indo e vindo contra as marés eu me elevo / Esquecendo noites de terror e medo / Eu me levanto / Numa luz incomumente clara de manhã cedo / Eu me levanto / Trazendo os dons dos meus antepassados / Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos / Eu me levanto / Eu me levanto / Eu me levanto”.
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