Crítica: O Doutrinador

Eu, assim como qualquer outro sujeito nascido nos anos 70/80, sou da época em que doutrinador mesmo era Apollo Creed, o campeão mundial de boxe desafiado por Rocky em vários do filmes da franquia. Estou mencionando isso somente porque por muito tempo eu sequer fazia ideia do que queria dizer doutrina, que dirá doutrinador, mas ainda assim achava (como ainda acho) este uma das alcunhas mais fuderosas da história. O doutrinador é aquele que traz a doutrina, ou seja, o sujeito que delimita aos demais qual é o conjunto de princípios e diretrizes que deverá ser seguido por determinado setor da sociedade ou, no caso de O Doutrinador, por ela toda.

Baseado no quadrinho brasileiro homônimo de Luciano Cunha, O Doutrinador é talvez a primeira tentativa direta e explícita da produção audiovisual brasileira de fazer verdadeiramente uma obra multimídia, já que, além da HQ e do filme lançado nesta quinta, teremos uma série do Doutrinador aparecendo ano que vem no canal de TV a cabo Space. Trata-se de um personagem que, após sofrer uma perda pessoal gravíssima muito por causa do descaso dos políticos com a saúde pública, resolve matar todos os políticos corruptos envolvidos.

É, portanto, um enorme exercício de catarse neste país que desde sempre sofre impotente e desgraçadamente com os desmandos e privilégios de uma classe política que nos vê a todos apenas como o gado que sustentará suas vidas de excessos e saciará sua sede de poder. Antes de mais nada, o personagem de Luciano Cunha não é meramente um espírito da vingança ou um arauto da justiça, mas um representante potente (pela violência) de um povo impotente. Neste ponto, a obra dos diretores Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça acerta em cheio ao se valer de uma simples história de origem de herói que nos acostumamos tanto a ver nos últimos anos com a enxurrada de filmes do gênero para construir um personagem até mesmo simplório, mas que resume em si todas as frustrações de todo um povo.

Numa mistura tupiniquim de vários personagens das HQs como o Justiceiro e Rorschach de Watchmen, Miguel (Kiko Pissolato), um policial federal sinistrão, se torna obcecado com promover a morte de todos os que de alguma forma contribuíram com a tal perda pessoal que sofreu porque nada mais lhe resta a fazer. O luto é dolorido demais, a justiça já não tem qualquer sentido para ele e a vingança não trará de volta o que foi perdido. O problema é que é necessária uma boa dose de boa vontade para se perceber isso, já que o longa teima em trilhar o caminho do lugar comum e do cliché, sem apostar numa análise mais detida de Miguel, o que poderia ter adicionado novas camadas à obra.

Trata-se de um projeto bem ambicioso, então é compreensível que a produção e o roteiro (cujos créditos contam com inacreditáveis 8 pessoas) tenham optado por trilhar um caminho de segurança, mas é também compreensível na mesma medida que quem o assista com algum senso crítica perceba uma história derivativa, lotada de clichés e com furos de roteiro que só passam despercebidos por aqueles que estão distraídos satisfazendo todo o seu ódio contra a classe política brasileira, tão violenta e catarticamente assassinada no filme.

O longa é todo estruturado justamente como uma série. Depois da primeira e melhor parte que conta a origem do anti-herói e tem no Prefeito Naldo de Senhora do Destino (plim plim) seu vilão (muito bem por Du Moscovis), passamos por uma nova construção de personagem e de vilões que prejudica o ritmo do filme por ser um pouco redundante, ainda que a película venha a terminar de maneira espetacular, numa evidente alusão a mais um outro clássico das HQs: o excelente V de Vingança, que foi muito bem adaptado ao cinema.

Contando com vilões cartunescos, daqueles que gargalham enquanto comem bife, fumam charuto, bebem conhaque e discutem seus esquemas de corrupção, e com um protagonista de uma só dimensão, mas que é mais do que suficiente para promover a tal catarse já mencionado, O Doutrinador é um filme de ação que cumpre o que se propõe, com cenas de ação boas, ainda que sofram com o maior flagelo do cinema do gênero atualmente: os cortes rápidos e a câmera tremida.

A obra, contudo, vai um pouco além disso muito mais por causa do tema escolhido do que por sua execução, valendo ainda seu ingresso caso você queira sair do cinema um pouco de alma lavada e também para rir de nervoso, posto que aqui, numa obra de ficção, o Governador vivido por Du Moscovis vai preso porque desviou míseros 2 milhões da saúde pública. Isto certamente fará qualquer um gargalhar, já que o valor é mísero somente diante do esquema de quase 1 bilhão de reais em propinas de Sergio Cabral, mostrando mais uma vez que a realidade tem uma mania perene de suplantar a ficção.

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